quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

«Jorge de Sena Aqui no meio de nós» de Fernando J.B. Martinho



Este livro de Fernando J.B. Martinho (n.1938) tem 110 páginas, vai buscar o título à página 27 e nas suas quatro divisões aborda a figura de Jorge de Sena em paralelo com a sua Poesia. Logo na página 7 o autor cita Carlos de Oliveira que definia assim os escritores que contam «aqueles que acrescentam ou opõem alguma coisa ao que já existe ou o exprimem de maneira diferente.» Fernando J.B. Martinho é das pessoas que melhor conheceu Jorge de Sena (1919-1978) como se lê na página 23: «Vivi três anos em Santa Bárbara, na Califórnia. Morei num apartamento em Isla Vista, perto da Universidade e do Pacífico. Foram três anos cheios e frutuosos. Era Leitor de Português no Departamento de Espanhol e Português da Universidade onde, desde 1970, Jorge de Sena ensinava. A casa de Sena, em Goleta, ficava a dez minutos de carro. Foram muitas as horas que passei na Randolph Road, em conversas informais na ampla sala onde esteva a Biblioteca, em chás com torradas e compota de lima ao serão, antes de voltar a casa, com a Joana e a Rute.»
O autor define esta Poesia na páagina 42: «sempre a Poesia de Sena soube dialecticamente combinar  a disciplina e o excesso, a ordem e o tumulto, o clássico e o moderno».  Noutro passo explica como, diferente de Régio ou Torga, Sena escreve uma Poesia sem Teatro: «Não há cenário nem há plateia. Não há espectáculo. Não há confessionalismo. O que em seu lugar temos é uma desesperada descida às funduras da alma humana».
Poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta e tradutor, Sena é acima de tudo Poeta como no  auto-retrato publicado no volume «Peregrinatio ad Loca Infecta»: «Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos / mágoas, humilhações, tristes surpresas / e foi traído e foi roubado e foi / privado em extremo da justiça justa / e andou terras e gentes conheceu / os mundos e submundos; e viveu / dentro de si o amor de ter criado; / quem tudo leu e amou quem tudo foi / não sabe nada nem triunfar lhe cabe / em sorte como a todos os que vivem. / Apenas não viver lhe dava tudo / Inquieto e franco, altivo e carinhoso / será sempre sem pátria/ E a própria morte / quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.»

(Editora: Colibri, Foto: Fernando Bento, Capa: Raquel Ferreira, Editor: Fernando Mão de Ferro)

[Um livro por semana 608]

domingo, 20 de janeiro de 2019

«Uma noite com o fogo» de António Manuel Venda



O segundo título do livro é «Serra de Monchique, num dos grandes incêndios deste século» e ajuda a situar este volume de 159 páginas assinado por António Manuel Venda (n.1968) mas o texto da contracapa explica melhor: «O grande incêndio da Serra de Monchique, em Agosto deste ano, marcado pela polémica sobre a actuação dos inúmeros meios disponibilizados para a zona, não foi uma novidade. No início deste século, a mesma serra já tinha sido invadida pelo fogo de uma forma avassaladora. Este livro, cuja primeira edição foi publicada há nove anos, conta uma das noites da tragédia em 2003, mostrando como já nessa altura o combate às chamas parecia ser algo proibido na serra.»
O pano de fundo deste conflito é antigo na sociedade portuguesa. Desde sempre existiu uma clivagem, uma divergência, uma ruptura, entre as Cidades e as Serras, a Corte e o Campo, o Urbano e o Rural. No ano de 2003 além da Serra de Monchique ardeu 90 por cento da mancha florestal de Vila de Rei, morreram perto de vinte pessoas mas o assunto não foi muito tomado a sério. A chamada «agenda política» esteva voltada para outros campos, os campos de futebol que estavam a ser inaugurados em Agosto de 2003 já a pensar no Europeu de 2004.
Voltando à relação «Urbano-Rural», na página 13 identifica-se a Cidade com o Inferno: «O inferno uma cidade… Lembrei-me disso. Lembrei-me da minha ideia do inferno, a que tinha desde a infância, uma cidade moderna, muitos prédios, ou antes, com arranha-céus – talvez a expressão mais adequada para o caso.» Ao contrário da cidade (comboios, autocarros, bicicletas, automóveis) o campo é povoado por animais (escalavardos, gatos-bravos, raposas, coelhos, veados, texugos, javalis, aves) e por pessoas numa relação intensa com a Natureza: «Naquela aldeia ficava a casa onde tinha vivido a minha avó, onde a minha mãe tinha nascido, onde tinha crescido, onde tinha estado até ao seu casamento.» Noutra página se anota uma relação implícita entre a serra (a aldeia) e a vida (a avó) : «A minha avó a querer ir para a aldeia junto ao ribeiro, que não ficava a mais do que algumas centenas de metros se se continuasse a descer pela estrada de terra.» A avó surge como um símbolo da Terra e do seu eco-sistema, algo que foi destruído mas não morto. A ruptura, as costas voltadas, os dois mundos separados (Natureza e Cultura) estão sempre presentes, seja no ministro («o motorista para levá-lo para o remanso da capital»), seja no homem que dá ordens («Um homem que mandava nos bombeiros, três ou quatro políticos, uns técnicos de uma direcção qualquer») e, mais adiante, «dava ordens de copo de whisky na mão». Whisky em vez de medronho, a Cidade em vez do Campo, aí está (ou pode estar) o ponto da questão.

(Editora: On y va, Foto do autor: João Andrés, Paginação: João Paulo Fidalgo)

[Um livro por semana 607]



sábado, 12 de janeiro de 2019

«O Lápis Surdo sou eu» de Ramiro S. Osório



Ramiro S. Osório (n.1939) viveu em Paria 22 anos tendo regressado a Lisboa em 1984. Em Paris o autor deste livro foi aluno de Barthes e de Bruno Bettelheim que influenciaram a sua relação com a escrita ou, dito pelo próprio, «3 bês trouxeram água ao moinho da milha literatura». O autor estreou-se em 1976 com «Ramirosório superstrass» (Moraes Editores), livro entretanto publicado de novo em 2000 pela Editora & Etc.  Os 16 contos deste livro foram escritos em Paris e são dedicados «a todas as pessoas (crianças ou não) que nunca encontraram um dragão e à Susana que encontrou um». O Prémio da Associação Portuguesa de Escritores atinge com esta publicação a sua plena finalidade pois a edição anterior apenas integrava 8 dos 16 contos.
O usufruto deste livro é toda uma grande festa a juntar o texto e as ilustrações que não é possível reproduzir numa curta ficha de leitura. Como convite à leitura fica o conto «O lápis surdo»: «Quem é que terá tudo a triste ideia de pôr os animais a falar, nas histórias para crianças? – Não sei – escreveu a máquina de escrever, O lápis fez como se não tivesse ouvido a pergunta. Mas a máquina de escrever não tinha papas nas teclas. – Esse lápis é mudo! E surdo que nem uma porta! A porta não gostou do que ouviu. Escancarou-se toda, rangendo nos gonzos quanto podia. – As portas não são surdas! Porque é que dizem sempre «surdo que nem uma porta?  É mesmo uma ideia sem pés nem cabeça! Essa frase faz a ideia explodir. – Eu não tenho pés nem tenho cabeça! Nunca vi nenhuma ideia com pés ou cabeça! Pés e cabeça são coisa de que nós não precisamos! E, por entre toda aquela algazarra de tantos fala-barato, o lápis – surdo ao  diz-que-diz – continuava a correr mudo pela folha de papel, a correr mundo fora pela folha fora, cobrindo-a e palavras, beijos, palavras…»

(Editora: Sulfúria Edições, Apoio: Sociedade Portuguesa de Autores, Desenhos: Ramiro S. Osório)  
         
[Um livro por semana 606]

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

«O todo ou o seu nada» de Amadeu Lopes Sabino



O título deste livro de Amadeu Lopes Sabino (n.1943) está num verso de Fernando Pessoa («Mensagem»)  e o conteúdo (231 páginas) faz o inventário completo, qualificado e circunstanciado de cinco décadas de relacionamento entre o autor e João Falcato. Este foi um homem de sete ofícios e esteve ao longo do seu tempo (1915-2005) em várias situações: marinheiro, náufrago, viajante, escritor, professor, jornalista e produtor de vinhos. Na página final o autor despede-se dele: «eternamente jovem , escoltado por Marta e por Maria, seguido por José, o neto e por outras e muitas gentes, por quantos nele acreditaram e por outros que três vezes o negaram , por discípulos e adversários, por associados e rivais, por meirinhos e juízes, pelos náufragos do Mello e pelos personagens de livros que escreveu, publicou, começou, idealizou e abandonou. Era um vate, um adivinho, um construtor de universos. Um prestidigitador. O todo e o seu nada. O meu mestre.»Embora referido como «romance» nas páginas de abertura, o autor define este livro como «biografia» e afirma «uma falsa biografia não é uma biografia falsa». Muito curiosa é a oposição entre dois escritores franceses que integram a educação sentimental do autor e do protagonista. Amadeu Lopes Sabino «mantinha desde os quinze anos uma relação íntima com Camus que nada iria abalar.» João Falcato tinha muito a ver com Malraux, o homem dos «percursos supostos e dos encontros fictícios.» Mas não trata apenas de Literatura este livro; há nestas páginas muito de História como por exemplo os navios interceptados ou abatidos no Atlântico durante a II Guerra Mundial: «Carvalho Araújo, João Belo, Cabo de São Vicente, Maria da Glória, Delães, Santa Irene, Quanza» ou seja e em resumo «Onze navios perdidos por acção dos beligerantes, uma centena de passageiros e tripulantes mortos». Voltando às Artes e às Letras, o livro regista a convivência do protagonista com poetas, ficcionistas, dramaturgos e pintores: Mário Cesariny, Vergílio Ferreira, José Régio, Sebastião da Gama, Fernando Namora, Júlio Resende – entre outros. Partindo da biografia de uma personalidade, o livro acaba por ser uma viagem no tempo português de 1915 a 2005. Na página 66 João Falcato queixa-se ao comandante local da GNR sobre o abandono das mobílias do seu domicílio conjugal. A resposta do graduado é: «Os ricos entendem-se sempre. A Guarda é para os pobres.» Sobre o livro inicial de João Falcato («Fogo no mar») vejamos a leitura de Jaime Brasil em O Primeiro de Janeiro de 14-3-1945: «Não há na literatura portuguesa depois da História trágico-marítima mais pungentes páginas a evocar a angústia dos naufrágios.» Leitor de Português em Munique durante pouco tempo, recorda um incidente no eléctrico a caminho da Universidade e no fim da viagem o jovem de vinte anos fala do passageiro: «O homem era um judeu. Há ainda muitos nesta terra. São inimigos da Alemanha. Se houvesse de novo ordem de matança eu matava alguns com prazer.» Mas o humor também está presente por exemplo na página 97: «Aos vê-los andar, tirar o chapéu, acender o cigarro, esperar que um carro passe para atravessar a rua, deter-se de esguelha para responder guturalmente à interpelação do estrangeiro, fico sempre a pensar onde estará o motor que aciona este mecanismo.»
 
(Editora: Bizâncio, Capa: Armando Lopes, Revisão: Sandra Pereira, Paginação: Ana Ribeiro)

[Um livro por semana 605]