Bebo devagar um cálice de aguardente branca e muito leve,
puríssima e macia, tal como saiu do alambique no passado mês de Setembro. É uma
aguardente que não pesa no estômago e que torna as digestões mais suaves. Mas
não a posso gastar muito depressa porque esta aguardente é uma memória viva do
meu Tio Nascimento e da sua Atalaia do Ruivo, paisagem perfeita entre sol e pó,
entre pedras e pinheiros, entre água e vento. Lugar mágico onde a terra quase
se junta ao céu numa espécie de oração sem palavras. Dois dias antes de morrer
com o coração cansado e incapaz de trabalhar mais, este homem que foi, em novo,
ceifar todas as searas do Alentejo e das regiões espanholas fronteiriças,
estava possuído de um vigor inesperado e obrigou os filhos e as noras a
trabalharem ainda mais para irem entregar o bagaço e o folhelho da uva a um
certo alambique para os lados da Serra das Corgas. Depois foi fazer uma festa
ao burro e enxotar as galinhas antes de olhar as cabras. Entretanto morreu na
grande cidade um dia antes de fazer a grande intervenção cirúrgica que lhe
poderia ter prolongado a vida caso corresse bem. Mas não correu. Hoje este
gesto de beber um cálice de aguardente tem para mim o valor de um regresso.
Esta bebida guardou a paisagem povoada pelo Tio Nascimento entre o seu lugar de
sempre, a sua casa dos ventos onde se vê ao longe um bocado de Espanha e, mais
perto, a terra das cerejeiras em
flor. Essa paisagem povoada onde o corpo do Tio Nascimento
descansa no cemitério da Sobreira Formosa mas onde o espírito circula no sabor
macio e puro, leve e branco desta aguardente que não pesa no estômago. Porque
incorpora a memória destilada de um homem cheio de humanidade.
(Crónicas do Tejo 113 - fotografia de autor desconhecido)
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