segunda-feira, 22 de maio de 2017

Bruno Vieira Amaral e a paisagem povoada do Mar da Palha


Fui de Santa Catarina viver para o Montijo em 1957. A casa ficava na Rua Sacadura Cabral nº 68 e, além de estranhar a água quente nas torneiras, há nesses primeiros tempos uma frase  de uma senhora «fina» ouvida numa Pastelaria do Montijo: «Os filhos dos motoristas não vão para o Liceu!» Num certo sentido era como a frase do repugnante ditador: «Está tudo bem assim e não podia ser de outra forma!» Quem não quisesse viver quotidianamente podia ir de férias para o Aljube, Peniche, Caxias ou Tarrafal. Nesse tempo -1957 - a vida no Montijo era dominada pelo Mar da Palha: fragatas em vez de Ponte, galeras em vez de camiões, lentidão em vez de pressa. O lixo de Lisboa vinha em batelões e era descarregado no Porto da Lama. Era vulgar ouvir falar do ciclone de 1941 que matou muitos fragateiros e os sobreviventes apareciam nos ex-votos do Santuário da Senhora da Atalaia. Na rua onde morava havia a passagem de galeras de Pegões carregadas de cortiça; no regresso levavam fardos de palha e ferro para portões. Eu era apanha-bolas do Desportivo no Campo Luís Almeida Fidalgo atrás da baliza do Redol, o lendário guarda-redes. Em 1957 ainda se falava do Padre Cruz (1859-1948) que um dia parou na nossa rua para beber água na fonte da Tia Pagá. O nosso vizinho Ilhéu fazia os melhores torresmos do Mundo, a Delvira morava no Beco do Esteval, eu ia para a Escola Primária e parava com o nariz colado ao vidro das oficinas do jornal «Gazeta do Sul». Foi nas suas páginas que o poeta Sebastião da Gama se estreou. A Rua Sacadura Cabral ficava perto do Cemitério, pelo meio apenas a Rua do Norte. Ainda tenho em mim os gritos de uma mãe que viu morrer o filho atropelado no Afonsoeiro. O livro «hoje estarás comigo no paraíso» de Bruno Vieira Amaral fez-me recordar tudo isto porque o Mar da Palha é o mesmo.


(Crónicas do Tejo 83 - Fotografia de Luís Eme)

Sem comentários:

Enviar um comentário