Fui de Santa Catarina viver
para o Montijo em 1957. A casa ficava na Rua Sacadura Cabral nº 68 e, além de
estranhar a água quente nas torneiras, há nesses primeiros tempos uma frase de uma senhora «fina» ouvida numa Pastelaria
do Montijo: «Os filhos dos motoristas não vão para o Liceu!» Num certo sentido
era como a frase do repugnante ditador: «Está tudo bem assim e não podia ser de
outra forma!» Quem não quisesse viver quotidianamente podia ir de férias para o
Aljube, Peniche, Caxias ou Tarrafal. Nesse tempo -1957 - a vida no Montijo era
dominada pelo Mar da Palha: fragatas em vez de Ponte, galeras em vez de
camiões, lentidão em vez de pressa. O lixo de Lisboa vinha em batelões e era
descarregado no Porto da Lama. Era vulgar ouvir falar do ciclone de 1941 que
matou muitos fragateiros e os sobreviventes apareciam nos ex-votos do Santuário
da Senhora da Atalaia. Na rua onde morava havia a passagem de galeras de Pegões
carregadas de cortiça; no regresso levavam fardos de palha e ferro para
portões. Eu era apanha-bolas do Desportivo no Campo Luís Almeida Fidalgo atrás
da baliza do Redol, o lendário guarda-redes. Em 1957 ainda se falava do Padre
Cruz (1859-1948) que um dia parou na nossa rua para beber água na fonte da Tia
Pagá. O nosso vizinho Ilhéu fazia os melhores torresmos do Mundo, a Delvira
morava no Beco do Esteval, eu ia para a Escola Primária e parava com o nariz
colado ao vidro das oficinas do jornal «Gazeta do Sul». Foi nas suas páginas
que o poeta Sebastião da Gama se estreou. A Rua Sacadura Cabral ficava perto do
Cemitério, pelo meio apenas a Rua do Norte. Ainda tenho em mim os gritos de uma
mãe que viu morrer o filho atropelado no Afonsoeiro. O livro «hoje estarás
comigo no paraíso» de Bruno Vieira Amaral fez-me recordar tudo isto porque o
Mar da Palha é o mesmo.
(Crónicas do Tejo 83 - Fotografia de Luís Eme)
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