segunda-feira, 8 de maio de 2017

Duas Palavras de Romeu Correia em 1968


«Na impossibilidade de viajar e percorrer as sete partidas do mundo, tenho-me debruçado sobre as recordações da minha infância para delas tirar o material com que se faz literatura. Assim tem acontecido com quase tudo o que tenho escrito e publicado desde 1947. Por minha fortuna nasci em Almada, terra profundamente associativa, cheia de cor e diversidade humana, com o estuário do Tejo lá em baixo e a grande cidade de Lisboa diante do nariz. Vila que foi conquistada à moirama por João Tiago, guerreiro de Afonso Henriques e de muitas e perdidas tradições, onde o século dezanove nos legou bandas de música, sociedades recreativas, bombeiros voluntários, cooperativas de consumo, montepios, o arco-da-velha! E ainda um espírito liberal e humanitário como raro se encontra noutro lugar. Terra de fragateiros e descarregadores de Cacilhas, de fabulosos tanoeiros-músicos, pescadores caparicanos, operários do Caramujo, de costureiras e de embarcadiços. Vila dos concertos de banda no jardim, das festas de São João e do regresso bacano da quinta da Ramalha, das cegadas carnavalescas, do enterro do bacalhau e da serração da velha, do Judas dependurado no sábado de Aleluia, das muitas e variadas pugnas desportivas dos anos vinte e trinta. Tudo isto me foi atirado aos olhos, numa rapsódia de cor que faria inveja à paleta de um Delacroix ou de um Chagall! Assisti também nas tabernas de Cacilhas e do Cais do Ginjal aos últimos abencerragens de poetas populares, cantadores de fado e escrevinhadores de cegadas: analfabetos uns, outros entendedores da escrita. Presenciei tudo isto na minha acidentada infância. Mais tarde, quando abandonei o box e o atletismo e tentei escrever histórias e comédias, socorri-me da paisagem humana almadense. A minha experiência da doca, a vagabundagem pelos cais, o contacto com tanoeiros e fragateiros, assim como o material fornecido por minha mulher, que ainda era messe tempo costureira de «macacos» de ganga, foram achegas para o Sábado sem Sol, Trapo Azul, Calamento, Gandaia, etc».

(Fotografia de autor desconhecido)

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