quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

«Velhos são os caminhos» de José Correia Tavares


José Correia Tavares (1938-2018)) apresenta-se numa quadra da página 31: «Constando aí meus rigores / Tudo ciência de ouvido / Muitos e grandes autores / Emendei a seu pedido.» Este livro é especial porque integra uma epígrafe de J. Rentes de Carvalho do livro «Mazagran»: «É disso que quero que me guardeis, Senhor. Dai-me raivas. Mantende viva em mim a capacidade de me enfurecer. Deixai que continue a chamar as coisas pelo seu nome, a criticar sem medo, a rir de mim próprio, e livrai-me até ao último momento das aceitações que nascem com a idade.»
Esta capacidade (ironia) de rir de si próprio surge na página 22: «Sou um poeta menor / Flori mas frutos não dei / Talvez, sabendo-as de cor, / Por medo às tábuas da lei.» Noutra quadra se pode ler toda uma sábia acumulação da filosofia: «Na paixão mal conjugados / Os verbos não se entendendo / Tempos e modos trocados / Amar é viver morrendo.» Poesia que não se fecha em si mesma, há nela um olhar sobre o mundo e o tempo: «Um cigarro na caruma / Parecendo não dar guerra / Sem importância nenhuma / Fará arder toda a serra.» Uma quadra faz a antecipação do fim da vida: «Mãos dadas à minha volta / Quando partir, rumo aos céus / Eu preciso duma escolta / Para me encontrar com Deus.» A Guerra Colonial está sempre presente: «Perdi, quando tinha farda / Cristo num fio em Angola/ Resta-me o anjo-da-guarda / Mas não bate bem da bola.» Noutra quadra é a Vida que passa depressa: «As coisas são mesmo assim: / Tendo mais ou menos graça / Passou a vida por mim / Como o sol pela vidraça.» Mas, mesmo passando depressa, a Vida é povoada por filhos da mãe: «Todos uns belos sacanas: / Antigos seminaristas, / Em suas vidas, profanas / Ostentam de bispo as cristas.» Ou então por ladrões: «Tu sempre foste ladrão / Mas escapas, qual enguia / Se um de nós te põe a mão / Vais parar à enxovia.»
Entre o Mundo e a Vida, a voz do Poeta tudo regista, até um canto gregoriano: «O canto gregoriano / Que nos ares se levanta / Mesmo divino, é humano / Pois sai da nossa garganta.» Tal como regista a própria arte poética: «Há coisas essenciais / Para fazer um poema: / Alegrias, também ais / Seja lá qual for o tema.»

(Um livro por semana 580 - Editora: Húmus, Prefácio: Lídia Jorge)

domingo, 14 de janeiro de 2018

Jaime Murteira e Alexandre O´Neill – Ribatejo entre água e fogo


Jaime Murteira (1910-1986), pintor hoje recordado, foi discípulo dos artistas Frederico Ayres e António Saúde. Recebeu uma primeira medalha na SNBA, um prémio Silva Porto no SNI e um segundo prémio no Salão da Beira Alta. Tem obra representada nos seguintes Museus: Arte Contemporânea, Soares dos Reis, Ultramar, José Malhoa, Faro, Lagos, Vila Franca de Xira, Guimarães e Figueira da Foz. O quadro aqui reproduzido tem por título «Manhã no Ribatejo». Ora a dita «manhã» pode ter água e fogo como no poema de Alexandre O´Neill (1924-1986) no livro «As horas já de números vestidas» de 1981. O título do poema é «Fogo posto»: «Estou no centro do país, rodeado de incêndios. / Os pinheirais em fogo esbraseiam o ar. / Reguei o telhado e o quintal porque as velhas são muitas / A vizinha cega, sem qualquer progresso, vai tocando o seu órgão Tornado 4./ A irmã apanha velhas, mostra-mas na mão, / apagadas ou parecendo ou quase / e fala do carteiro – motorizada aqui, saco acolá, sapato mais além – que, presuntivo pirómano, a si mesmo se teria apagado nas águas do Tejo.» (fim de citação) O poeta comentou mais tarde numa entrevista a Clara Ferreira Alves (Jornal Expresso) deste modo: «Há um poema sobre fogos-postos de que gosto muito, considero-o um dos mais bem acabados que escrevi até hoje. E emociono-me ao relê-lo. Emociono-me por estar bem feito. Nota final – por uma questão de espaço não é possível citar o poema no seu todo.

(Crónicas do Tejo 97 - Fotografia de autor desconhecido)

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

«A pedra não pode ser coração» de Rui Almeida


Rui Almeida (n.1972) mantém desde 2003 o Blog «poesia distribuída na rua» e tem publicado  desde 2009 um conjunto de livros: «Lábio cortado», «Caderno de Milfontes», «Leis da separação», «Temor único imenso», «A solidão como um sentido seguido de Desespero» e «Muito, menos». Poemas seus integram a antologia «Por la carretera de Sintra», organizada e traduzida por Marta López Vilar e publicada pela Editora La Lucerna.
O título deste recente livro de 42 páginas cujos poemas foram escritos entre 28 de Outubro e 1 de Dezembro de 2014, é retirado do poema da página 16: «A pedra que foi coração / É agora corpo parado / Do esquecimento / Com a textura da cinza. / Quando brilha seduz / Mas nunca se deixa encontrar, / Perde a força, falha / Na ternura. A pedra / Não pode ser coração.»
Uma das abordagens possíveis a este livro pode ser feita pelos números. A edição é de cem exemplares. Tanto o poeta como o editor terão percebido que Portugal é um país de analfabetos e quase ninguém lê poesia. Falar de Bocage pelas anedotas, de Bulhão Pato pela gastronomia e de Camões pelo olho perdido em combate é o que nos espera num país que não lê os seus poetas embora proclame, numa abjecta «frase feita» que Portugal é um país de poetas.
O ponto de partida pode ser o tempo: «Tudo quanto começa / Nunca acaba. Não é / Da memória que falo, / Antes da sensação / Física de um coração / A bater diante de ti». O ponto de chegada pode ser a alegria: «Quase eternos, vamos seguindo a luz / Tomando na mão a firmeza da vida, rasto de memória / A construir o fôlego da alegria.» Pelo meio fica a Poesia como lugar de dupla inscrição entre Natureza e Cultura: «A poesia. A vontade de ternura, um / Caderno onde encostar a cabeça.»

Editora: do lado esquerdo.

(Um livro por semana 579)

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

«A mais absurda das religiões» de Nuno Costa Santos




Nuno Costa Santos (n.1974), director da Revista literária açoriana Grotta, é escritor e argumentista para além de autor de peças de teatro e documentários sobre poetas (Ruy Belo e Fernando Assis Pacheco) sendo cronista na Revista Sábado. O conjunto destas crónicas escolhidas por Diogo Ourique chega às 208 páginas e divide-se em cinco grupos: «Vida, vidinha», «Produtor de conteúdos», «O pai cronista», «Alguns nomes» e «Dois países».
Na introdução o autor explica o livro («Isto dava uma crónica. Houve uma altura em que estava agarrado à crónica, condição da qual nunca consegui recuperar. Qualquer coisinha trazia, enroscada, uma ideia para escrever uma crónica. Ou para ter a ideia de escrever uma crónica») e explica-se a si mesmo, deste modo: «Aqui o vosso cronista é um bicho atípico (um dia vou escrever um pouco à maneira dos mestres Millôr e O´Neill, um manual de instruções para ser melhor compreendido por aqueles que têm por hábito arrumar as pessoas em gavetas). Mas posso dizer que tenho aspectos conservadores: sou muito apegado aos meus e à minha terra, sou pelo fazer individual (detesto a palavra «empreendorismo»), sou comunitarista: acredito muito no voluntariado, algo que é alvo de desconfiança por uma esquerda estatista. Mas também sou solidário, também sou pela atenção do Estado aos mais desprotegidos socialmente, também sou liberal nos costumes, também quero caminhar para uma sociedade mais justa e mais fraterna.»
O título do livro surge na página 86: «Sentado num café à espera de um amigo que não chega. Escrevo. Num pequeno caderno. E penso que escrever é a mais absurda das religiões. Para quê escrever se posso ver o jogo de ténis na televisão. (Um tipo de pólo verde esta a fazer um serviço.) O amigo é jornalista, desculpa ainda melhor do que a de ser pai de um rapaz de dois meses (que sou).»  
Exemplar é, entre outras, a crónica da página 96 que começa com uma aproximação pessoal («Quando eu tinha 17 anos o meu pai achou que o filho não devia seguir o curso de Comunicação Social porque depois iria ficar no desemprego.») e deriva para uma situação mais geral: «Diz-se e bem que não há democracia sem jornalismo. Direi mesmo: não há democracia sem bom jornalismo, exigente, feito de frescura mas também de experiência, de olhar atento e experimentado, mais sabedor das curvas que a vida pública pode dar.»

Editora Escritório, Organização e Revisão: Diogo Ourique, Capa: Joana Viegas, Design: Dânia Afonso.  
    
(Um livro por semana 578)