sábado, 23 de dezembro de 2023

«Aqui a caminho» de Manuel Barata

 


Neste seu décimo livro, Manuel Barata (n.1952) começa por uma advertência («Nunca cedas à vaidade»), continua com uma reflexão («É o tempo /o inexorável tempo/ que atenua a mágoa/e mostra/quão profundas/eram as raízes») sobre a Vida e também sobre a Dor: «O tempo somente mitiga a dor/(À ausência chamamos saudade)/mas as cicatrizes ficam e moem./É certo que não matam; todavia,/ roubam o colorido às nossas vidas.» 

O percurso deste livro tem origem na Mata («A minha aldeia será sempre a minha aldeia/ e nenhuma outra a poderá substituir»), passa por Nambuangongo, Cabo Verde, Lisboa, Castelo Branco (e outros lugares) e termina em Santa Iria da Azóia: «Tudo gastámos, amada,/tão perdulariamente!/ e só temos p´ra nos dar/este silêncio gélido.» A geografia do volume tem duas referências; a mãe do poeta (Maria Cesaltina) e a esposa (Zélia) mas não se esgota no território dos afectos. Antes se prolonga por um espaço («Eram os livros») cuja origem está em Gutenberg: «Homem/de imaginação/sonhou /a tipografia/e ousou/um novo milagre/da multiplicação./ Outro peixe/outro pão!»

Fernão Lopes, Gil Vicente e Luís de Camões são os primeiros três escritores que «fogem das leis da morte» e fazem companhia ao autor na sua biblioteca. Deste século, entre outros, António Salvado, Luís Miguel Nava e Isabel Mendes Ferreira: «Todas as misérias do mundo lhe doem/e delas fala e escreve com amável sabedoria./Caminhar na vertical tem um preço/e de olhos abertos um preço ainda maior.»

Edição: Câmara Municipal de Castelo Branco, Design; Paulo Veiga, Colecção: Alvores)

[Livros e Autores 17]

 


quarta-feira, 22 de novembro de 2023

«Diário da Bela Vista» de Clara Macedo Cabral

 


Clara Macedo Cabral é autora, entre outros, do romance «A Inglesa e o Marialva» (2018) e reside em Londres desde 2005. Este pormenor não é indiferente pois as primeiras palavras deste livro de 225 páginas são estas: «Fugimos de Londres mal nos foi possível». Tal como em Almeida Garrett, esta viagem é um pretexto para dissertar sobre a vida («A vida é um momento»), a pandemia («Cada vez que saio à rua sou como uma doente que recebe alta e estremece por descobrir o corpo ainda vivo.»), os livros («Percorro a Rua da Escola Politécnica, está tudo fechado mas um pequeno alfarrabista quase a chegar ao Rato, tem a porta aberta. Tem ali o seu negócio, o seu escritório e vem entreabri-lo num domingo, é prova cabal de que o faz por gosto.» ou sobre a luz de Lisboa: «Lisboa tem cores que não existem em Londres. Tem rosas, ocres, amarelos nas fachadas. Rosas velhos, rosas pálidos, amarelos torrados, amarelos pálidos. Tem cantarias brancas em redor das janelas (dizem-me que para nos protegerem dos espíritos). E telhados em telha colorida que em Londres são em xisto negro ou acinzentado. Por cá, não encontro sequer a cor do tijolo das casas vitorianas, o azul-garrafa que é um clássico entre as londrinas para nem falar das cores que Isabel II usa no seu guarda-roupa e que deixam imperturbáveis as pupilas dos seus súbditos. Para mim as cores mais atractivas, as mais apelativas, as que me põem em contacto comigo mesma, são as cores que alcanço da varanda sobre Lisboa antiga.» O filho  sonha com o regresso a casa: «Faltam seis dias para voltar a Inglaterra».  Dito de outra maneira: «O meu filho não é português, eu não sou inglesa. Aqui radicam as nossas divergências. Mas ele é a âncora mais profunda que lancei, que me prende e atrai a Inglaterra». Fica uma pálida ideia do livro com belas 18 fotografias – 16 a cores e 2 a preto e branco. E sete cartas de Titus Boeder.     

(Edição, design e produção gráfica: Vasco Rosa, Prefácio: Luís Newton, Foto: Mónica Quartin, Apresentação: Guilherme d´ Oliveira Martins, Apoios: Cruz Vermelha Portuguesa e Junta de Freguesia de Estrela)

[Livros e Autores 16]


terça-feira, 31 de outubro de 2023

«O quarto segredo de Fátima» de Mário Rui Silvestre


Mário Rui Silvestre é autor multifacetado: contos («Do rio à margem»), romances («Para a morte não ter razão»), poemas («Ribaterra»), historiografia («As gloriosas máquinas do pão») e ensaio («Em torno de Camões») por exemplo. Neste seu recente livro de 472 páginas, o autor organiza, em 16 capítulos, uma narrativa que cruza vários  registos. Um deles é o policial («Onde é que trazes a bomba!?») a propósito do assalto ao automóvel do narrador que transportava um manuscrito. O outro é o histórico («nesta húmida manhã de 13 de Março do ano de Cristo de 1147»). O ponto de partida é uma ideia («Hoje Fátima seria impossível») e uma certeza: «Fátima é uma narrativa compósita, construída, a maior parte, depois de 1930». Esta data está ligada à morte do Patriarca Mendes Belo em 1929, ele que «nunca validou com a sua presença tamanho logro». O jornal «O Mensageiro» perguntava «Como conciliar a afirmativa de que a guerra acabava no dia treze de Outubro se ainda hoje continua?» O pároco de Fátima, por sua vez, «nunca foi à Cova da Iria no dia das aparições» A este aspecto pessoal juntamos o lado social: «O erro da República foi querer acabar, numa geração, com a religiosidade popular irracional e fanática». Pode ler-se na página 221 «O verdadeiro milagre de Fátima está nisto: ter sido o elo aglutinador das forças reaccionárias, religiosas e civis que acabaram com a República e prolongaram as trevas.» Portugal não mudou muito: «paranóia e regabofe de reis, abusos do clero e parasitismo de fidalgos». Uma conclusão provisória: «Se não existisse morte não havia religiões». Um convite à leitura: «O melhor dos tesouros perdidos é buscá-los». Também por isso este é, sem dúvida, um livro a não perder.

(Editora 5livros.pt)

[Livros e Autores 15]

 

domingo, 15 de outubro de 2023

«Colheita serôdia – inéditos e dispersos» de Levi Condinho

Levi Condinho (n. 1941 – Bárrio, Alcobaça) mantém neste seu livro de 63 páginas a linha do  anterior «Roteiro cego» - entre a Natureza e a Cultura. O título desta recolha já remete para a actividade agrícola, a colheita serôdia é uma recolha tardia, com os frutos já maduros. Por outro lado os poemas estão povoados com referências a nomes das Artes e das Letras: Lawrence, Borges, Ruy Belo, Álvaro de Campos, José Gomes Ferreira, Herberto Helder, Peter Handke, Holderlin, Jorge Peixinho, Shoenberg, Bach, Boulez, Messien, Cesário Verde, Pavese, Mozart, Pousão, Matisse, Chagall, José Auréli ou Kurosawa.

O autor mantém a sua ligação a uma (a sua) arte poética antiga embora neste volume tenha a data de 5-6-90: «Perscrutar os veios da matéria /seus nexos sons perfumes /ínfimas substâncias copuladas pela língua /inventar o Verbo que invente a negação /da profaneidade da palavra /que autómatos nos move sobre escarpas/ autonomizar a «casa do Ser» /nos seus casulos de silêncio/ fazendo-os explodir no seio de Deus /para que Outro se recrie/ ser uno entre corpo e fluxo /usar o saber de todas a osmoses /todas a íntimas soberanias do sangue /negar a Morte abraçando-a /no Mundo»

Fiquemos com o poema escrito em 30-11-94 na memória da manhã de 1955: «Aquela tépida manhã primaveril - 1955 talvez / o bando dos «corvos» fato preto gravata obrigatória /onde seria a sessão de cinema / «Marcelino pão e vinho» - o menino em que nos revíamos / caminhando pelas Ómnias / talvez no Vale de Santarém irrecuperável neblina /essa frescura branca poalha do tempo/ o cheiro penetrante do estrume /junto a uma cavalariça rente à estrada de saibro/ o pecado pressentido a malícia indefesa /( as mãos – mundanamente – nos bolsos) / «os corvos» - «aí vão eles» murmúrios blasfémias / o ódio jacobino do mundo/ contra a redoma da Graça esse orgulho essa alteridade /(…) / o sangue do jovem «corvo» atarantado / entre antíteses impossíveis /esperma comburente no júbilo do incenso.»

(Editora – Húmus, Direcção – Francisco Guedes)

[Livros e Autores 14]

 

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

«Bernardo Santareno – da nascente até ao mar» de José Miguel Noras


José Miguel Noras (n.1956) está já a trabalhar num novo volume («Santareno do mar ao fim do mundo») pois a vida de Bernardo Santareno (1920-1980) não podia caber num livro de 389 páginas mais 48 de fotografias a cores sobre o seu percurso escolar, académico, cultural, cívico, literário e artístico. As fotografias constituem uma excelente «fotobiografia» com fotos únicas e legendas com valor acrescentado. O resumo da sua vida está na página 39: «Infância traumatizada. Adolescência dolorosa. Filho único. Liceu em Santarém. Solidão. Faculdade em Lisboa. Crise mística profunda. Interrupção dos estudos. Faculdade em Coimbra. Melhor, menos solidão. E poemas. Quando tive dinheiro para editá-los, editei-os. Poemas maus. Um primeiro livro de Teatro, já formado em Medicina: «A promessa, O Bailarino, A excomungada» Edição do autor, paga com o que ia ganhando como médico da frota bacalhoeira.» Sobre a vida no mar lê-se na página 301: «Queria de todo o coração ser útil a esta gente, os pescadores, pois eles são bons, humildes, e extraordinários de coragem e trabalho.» Sobre si Bernardo Santareno afirma: «Um indivíduo como eu, é claro, tem de sofrer mais que os outros pois sente mais fundo, todos os inevitáveis achaques do mundo. Mas é a vida.» Na página 251 outra afirmação: «A única coisa de que gosto é de escrever. Todas as outras actividades me conduzem a essa, que é fundamental para mim. Escrevo em qualquer lado e tudo o que me rodeia me é totalmente indiferente quando estou a escrever.» Em 1956 afirma ao pai: «Nada é firme nem seguro nesta vida. Não fazemos outra coisa que não seja experimentar caminhos, nunca chegaremos a um fim. É preciso muita coragem para se viver, sobretudo num país como o nosso, neste tempo e quando não se é de todo estúpido e inculto.» Fica o convite à leitura. Um livro grande que é também um grande livro.

(Editora: Âncora, Capa: Sofia Travassos, Revisão: António Carmo, Carlos Oliveira e Rejane Wilke. Nota de abertura: António Ramalho Eanes, Prefácio: João Luís Madeira Lopes, Posfácio: Joaquim Martinho da Silva, Apoio: Municípios de Santarém, Alcanena, Almeirim, Alpiarça, Golegã, Lamego, Nazaré e Tomar, Instituto Politécnico de Santarém e Associação Industrial Portuguesa)              

[Livros e Autores 13]

  

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

«O chão da renúncia» de Aida Baptista

 


Aida Baptista (n.1948) reúne nestas 200 páginas 47 crónicas suas do jornal «Post Milénio» de Toronto e um poema de Eduardo Bettencourt Pinto. O título está na página 45 que afirma a paixão da crónica («guardamos palavras em molduras talhadas na beleza de um texto») de novo relevada na página 89: «Nós, os cronistas, gostamos de saber que somos lidos, mesmo que nem sempre seja devidamente apreciado tudo o que escrevemos.» A autora nasceu no Tabuaço, viveu em Benguela, Helsínquia e Toronto, de novo Benguela e vive no Sardoal mas continua a ouvir uma advertência: «O grande problema do teu casamento com Angola, é que apesar de ela fazer amor contigo todos os dias, te satisfazer os sentidos e te dar muita poesia, beleza e bem-estar físico, não te oferece a compatibilidade intelectual e ética de que necessitas.» As crónicas são uma manta de trapos e cada texto (cada quadrado) uma sobra das coisas que a autora costurou no passado: «Num revejo uma saia da minha filha. Noutro, uma camisa xadrez, à pescador, que havia feito para o meu filho. Hoje será com ela que vou cobrir o futuro em que me deito.» Ou dito de outra maneira: «Cada momento que passa é um laboratório de observação da vida.» Porque «Na vida, os ciclos nunca se dão por encerrados; no quotidiano a perenidade é a cada instante substituída pelo efémero.» África pode ser uma grande lista de faltas («saneamento básico, água potável, recolha de lixo, medidas profilácticas, cuidados médicos, civismo.») porque «Desiludam-se os que sonharam uma outra África porque essa será sempre território de uma burguesia que se acantonou nas melhores vivendas, se desloca nos carros topo de gama e dá festas onde não faltam as melhores marcas de vinho e de whisky. O povo, esse, continuará confinado aos musseques de casa de adobe e terra batida.» A ideia final: «Não se dão indemnizações a quem tudo trouxe consigo. África pertence-me porque ela está dentro de mim! Não há fortuna que a pague!»     

(Editora: Minerva Coimbra, Capa: Marcolino Candeias, Revisão: Eduardo Bettencourt Pinto, Patrocínio: Município de Tabuaço, Apoios: Banco Santander Totta - Toronto, Direcção Regional das Comunidades - Açores)

 [Livros e Autores 12]

 

sexta-feira, 7 de julho de 2023

«Montes da Senhora – Freguesia, Vida e História» de Victor Neto


O ponto de partida do livro de 172 páginas, 57 fotos, um mapa e vários anexos é, segundo Victor Neto (n.1949) «para quem nos quiser conhecer melhor, para reavivar a memória dos mais velhos e para quem nos suceder na procura do conhecimento dos seus antepassados.» Os Montes da Senhora são seis: Monte Baixo, Monte Meio, Monte Cima, Aldeia Cimeira, Monte Trigo e Monte Barbo. Logo na página 12 o poema de José Fernando Delgado Mendonça afirma «A minha aldeia /É feita de gente». O volume poderia ter como segundo título «A Terra e o Homem» pois regista uma dupla inscrição – Geografia e História. O mesmo é dizer público e privado. De um lado o lugar «No Pico do Galego se pode observar, em dia claro, a cidade de Castelo Branco e as serranias de Espanha a nordeste e sudeste, as serras do Muradal e da Gardunha e da Estrela a norte, a serra de Alvelos e o Picoto Rainho a nordeste, a serra da Melriça a oeste, a serra de São Mamede e o norte alentejano a sul.» Do outro lado o Homem que habita o espaço. Tanto pode ser lembrado por Baptista-Bastos («Eu gostava de conversar com os velhos, bebia com eles o vinho da terra e tentava apreender essa sabedoria milenar criada pelas rotinas desgraçadas do tempo. Recordo dois deles: o tio João Garrido e o tio Canhoto.») como por Bernardino Páscoa sobre o pai («Todos os soldados, polícias, guardas-republicanos em gozo de licença ou férias passavam lá por casa para assinar  o passaporte») ou Manuel Sequeira sobre o avô: «O oficial de dia era o responsável máximo pelo quartel mas confiava no cabo de dia e decidiu pernoitar em casa da namorada. Na noite da morte de Sidónio Pais o cabo de dia assumiu o comando do quartel e nunca mais se livrou da alcunha dada pelos companheiros – Comandante Beirolas». Sem esquecer a legenda da foto 57. «No já longínquo tempo das ceifas, os Homens ajoelhavam-se pedindo à Nossa Senhora do Pópulo a sua protecção para não encontrarem por lá doenças que naquele tempo eram letais. Muitos ficaram por lá.»

 (Capa: José Luís Ribeiro, Paginação: Gráfica 99, Revisão: Sérgio Fernandes)

 [Livros e Autores 11]


segunda-feira, 5 de junho de 2023

«José Afonso ao vivo» de Adelino Gomes

Trata-se aqui de um belíssimo livro/disco de 84 páginas com dois CDs e um LP dos concertos de José Afonso em Coimbra (4-5-68) e Carreço (23-2-80). Adelino Gomes (n.1944) chamou-lhe «Uma fagulha colectiva» embora na página 3 se leia «Zeca Afonso inédito» e na capa se leia «José Afonso do vivo». O trabalho deste livro/disco confirma em pleno as palavras de Jacinto Baptista em 1978 no jornal «Diário Popular»: «O jornalista é o historiador do quotidiano». Na verdade Adelino Gomes estava no Cais da Rocha Conde de Óbidos em 9-9-67 e queria entrevistar José Afonso (1929-1987) para o programa PBX no RCP mas a primeira resposta é adversativa: «Porquê? Para quê? Deixei-me dessas coisas. Importantes, umas cantiguetas?» . Adelino Gomes não desiste e recorre a fotografias, recortes de jornais, cartazes, ofícios da GNR, ofícios da PIDE, cartas, bilhetes para espectáculos, convites, recados. Assim organiza uma reportagem, o mesmo é dizer, uma cartografia sentimental dum certo tempo português exacto e definido.

A primeira parte do livro vai de 9-9-67 (chegada da navio «Angola») a 28-12-68, data do espectáculo na Gruta das Lapas (Torres Novas) com intervenção directa do pároco Amílcar Fialho, natural de Santa Catarina. A segunda parte avança para 28-2-1980 com os pormenores do concerto realizado nesse dia às21h30m na Sociedade Instrução e Recreio de Carreço. O resto está no livro e nenhuma nota de leitura pode substituir. Fiquemos com as palavras finais de Adelino Gomes: «Falei com mais de uma centena e meia de pessoas. Pessoalmente, via telefone e inúmeras vezes por email. Apenas uma pequena parte verá o seu nome citado neste trabalho. Esse foi sempre, enquanto jornalista, um dos meus dramas.»      

Resumir um livro de 84 páginas em 23 linhas também pode ser visto como um drama mas como diz o lugar-comum de todos nós «não há-de ser nada» O importante é que o convite a ler o livro e a ouvir os CDs ou o LP seja aceite porque um caso destes só acontece uma vez na vida.

(Editora: Tradisom, Introdução, investigação e texto: Adelino Gomes, Nota do editor: José Moças. Posfácio: Ricardo Romano, Concerto de Coimbra: Jorge Rino, Concerto de Carreço: Manuel Mina, Design: Rodrigo Madeira, Revisão: Laura Alves, Apoios: Fundação INATEL, Municípios de Coimbra, Torre de Moncorvo, Santo Tirso, Setúbal, Viana do Castelo e Grândola)

[«Livros e Autores 10]


domingo, 9 de abril de 2023

«Pelo Campo – Correspondências e outras histórias» de Carlos Lobão

 


A freguesia dos Cedros situa-se na ilha do Faial, entre a Praia do Norte e o Salão e fica a 19 quilómetros da Horta. O livro de 427 páginas integra 197 notícias mas nem em todos os jornais existem colecções completas conforme assinala Carlos Lobão (n. 1959) que explica na página 13: «Adicionámos algumas notas de rodapé, alguns itálicos, sobretudo no que diz respeito às festividades religiosas e alguns quadros sobre o movimento da população e sobre diferentes recenseamentos.» O livro parte de uma ideia («Ninguém tem dúvidas que desde sempre a maioria dos homens vive no anonimato») que desde 1883 tende a ser contrariado pelos jornais faialenses: O Açoriano (Notícias do Campo e Caixa do Correio), O Faialense (Freguesias Rurais), O Atlântico (Correspondências e Freguesias Rurais, O Jornal do Povo (Pelo Campo), O Telégrafo (Correspondência, O Correio da Horta (O Correio nos Cedros) e O Eco Cedrense (Crónica Local). Afirma o autor: «a análise destas correspondências permite verificar quão importante é o papel da imprensa para o conhecimento da comunidade de Santa Bárbara dos Cedros, no período compreendido entre 1883 e 1977.» Temos aqui o jornalista como historiador do quotidiano. De um lado as instituições locais, a vida social, cultural, económica e religiosa e do outro lado as pessoas – nascimento, filiação, casamento, emigração, morte. Na página 103 lê-se: «Os senhores da cidade têm o mercado, têm o passeio, têm a pesqueira e não sei que mais comodidades sustentadas pela Câmara e nós, os campónios, contribuímos para isso e não gozamos.» E conclui: «Têm excelentes escolas e nós desafiamos a quem quer que seja para nos contradizer o que vamos asseverar e daremos um doce a quem nos provar o contrário. Não há sequer uma abegoaria em que a água e o vento entrem tanto à vontade como na escola do sexo masculino desta freguesia.»

(Edição: Junta de Freguesia dos Cedros, Composição e paginação: Carlos Lobão e Gráfica O Telegrapho)

 [Livros e Autores 09]


quarta-feira, 22 de março de 2023

«Vinho & Amigo o mais antigo – canções de beber dedicadas aos verdadeiros amigos – pela Off&Sina de Mvsica»

 


Livro/disco  com coordenação editorial de Carmo Gregório, textos de Bartolomeu Dutra, Francisco Luís Parreira, Frei Bento Domingues, João Paulo Martins, João Pimentel Carreiro, José Fanha e Paulo Sucena, arranjos e direcção musical de João Pimentel,  músicos: Rui Curto (acordeão), Jorge Trindade (clarinetes), João Pimentel (guitarra), Eduardo Jordão (piano), Ceciliu Isfan (violino e viola), solistas: Ana Baptista, Bartolomeu Dutra, Manuel Freire e Tony da Costa, coro: Ana Baptista e Cathrin Lybart (sopranos), Bruno Sales e Rodrigo Carreto (tenores), Gustavo Lopes (barítono), vozes: Daniel Vieira, Eduardo Costa Pereira, João Pimentel, Paulo Sucena e Rui Curto, declamador: José Fanha, assistente de produção executiva: Carole Plackitt, assistentes na direcção musical: Ana Baptista e Cathrin Lybart, engenheiro de som: Joaquim Monte, assistentes: Jerôme Durant e José Gil. O ponto de partida está na página 7: «Em finais do século passado, um grupo de amigos, reflectindo sobre a importância do vinho na sociabilidade e cultura portuguesas, constatou o seu parco conhecimento sobre as canções de beber do cancioneiro popular português, Assim nasceu a ideia de recolher e gravar uma antologia de cantigas populares portuguesas relacionada com o vinho, a amizade e o acto social de beber. Por variadas razões o projecto, embora nunca esquecido, foi sendo adiado. Tal como o vinho e a amizade carecem de maturação, também este desígnio só passados cerca de vinte anos se corporizou. O trabalho que agora se apresenta reúne textos de um conjunto de autores que aceitaram o desafio de reflectir sobre o tema, para além da antologia das cantigas registadas no CD que é parte integrante deste livro.» Uma das cantigas refere Santarém, Chamusca e Cartaxo: «Pelo belo do Cartaxo/A virar copos abaixo/Pelo belo do Chamusca/ Que seja de cor bem fusca/Pelo belo de Santarém/Que grandes virtudes tem/Pelo bom de Carcavelos/Que dá cor aos caramelos.»

(Editora: Fabula Urbis, Rua Augusto Rosa 29 Lisboa telefone 218885032)

[Livros e Autores 08]


terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

«Avós: Raízes e Nós» de Aida Baptista, Ilda Januário e Manuela Marujo (org.)


O livro integra 61 narrativas (58 em Português e 3 em Inglês) que recordam a forma como os avós  marcaram a vida dos autores: Aida Baptista, Aida Jordão, Alexandra Silva, Alzira Silva, Ana Roque Oliveira, António Galopim de Carvalho, António Luís Cotrim, António Matias Coelho, Artur Goulart, Berta Bustorf, Carla Palma Fernandes, Carmen Carvalho, César da Silva, Chrys Chrystello, Dinis Borges, Eliane Veras da Veiga, Emanuel Melo, Emílio Boschilia, Fernando Nunes, Graça Castanho, Humberta Araújo, Humberto da Silva, Ilda Januário, Inez Marques, Irene Marques, Isabel Nery, Isabel Sebastião, João Vicente Faustino, Joaquim Pires, José Manuel Esteves, José Manuel Pyrrait, José Martinho Gaspar, Katharine Baker, Lélia Nunes, Luciana Graça, Luís Gonçalves, Luísa Maria Desmet, Madalena Balça, Manuel Aguiar, Manuela Barros, Manuela Marujo, Marcos Pinheiro, Margarida Estrela Ferreira, Maria da Conceição Nunes, Maria João Ruivo, Maria Zilene Cardoso, Martinho Silva, Michael do Carmo Baptista, Miguel Borges, Milai Sousa, Nereu Vale Pereira, Paulo da Costa, Pedro Paulo Câmara, Roseli Boschilia, Sandra Paula Barradas, Sérgio Ferreira, Teresa Roque e Urbano Bettencourt.  Três notas como convite à leitura. Na página 26 António Matias Coelho (Salvaterra de Magos, 1957) recorda a Avó Nunes: «A escola primária que eu frequentavaa situava-se a menos de cem metros da casa dela, do outro lado da estrada de terra. Como na escola não havia água, a professora e os miúdos iam bebê-la a casa da minha avó que se sentia rica por isso.» José Martinho Gaspar (Água das Casas, 1967) lembra o avô Vicente: «a vida no campo era de um pobreza profunda, em que andar descalço e uma sardinha para três era mesmo uma realidade.» Miguel Borges (Abrantes, 1965) lembra o avô Borges: «No meio da tanta gente só uma mão me segurava, de corpo e alma, ocupando o lugar de um pai ausente por culpa do «senhor da ponte», num suposto interesse da Pátria.» Um livro a não perder.

(Editora: Almaletra, Design e Paginação: Nuno Almeida, Tradução: Ilda Januário, Capa: Isabela Kowalska-Wieczorck)      

 [Livros e Autores 07]

 

sábado, 18 de fevereiro de 2023

«Os pássaros cantam em grego» de Rita Ferro

 


Depois de «Veneza pode esperar» (2014) e «Só se vive uma vez» (2015) Rita Ferro (n.1955) regressa ao mesmo registo. No caso concreto trata-se de um «diário» iniciado em 16-1-2019 e concluído em 30 de Dezembro de 2019 com a particularidade de todas as entradas começarem com a palavra «Ribatejo» embora Rita Ferro viva em Foros de Salvaterra. O título do volume está na página 77 que cita o «Diário» de Virgínia Woolf e o «lugar onde» está assim definido: «As pessoas entram e saem, umas vindas de Lisboa, outras, daqui mesmo e tem sido um arraial permanente, facto que nunca previ.» A autora exibe uma enorme lucidez sobre viver cada um em sua casa: «quanto mais idade vamos tendo mais difícil se torna a coabitação». O passado está presente («Nasci assim, destemida e imprudente») e mistura-se á memória na reflexão («Eu era orgulhosa, desafiadora, inconformada e destemperada») que se segue: «Fiz 64 anos mas pouco tenho a dizer sobre a matéria. As pessoas partem da noção ingénua de que a aparência é a verdade mas a verdade é que, para mim, tenho sempre 18 anos.» Entre o passado e o presente ficam as mudanças: «Estive a contar: são mais de quinze as mudanças que já fiz, desde que saí de casa dos meus pais. Gosto de me mudar e de começar de novo, noutro cenário». Na página 16 surge a referência ao local: «Aproveitando a alta do mercado, vendi o apartamento e comprei bem esta casa, a cinquenta quilómetros de Lisboa, em pleno Ribatejo. Mudei-me no dia 11 de Dezembro de 2018 e já passei aqui o Natal.» Claro que nem tudo são rosas: «as amplitudes térmicas daqui são as de Santarém: geladas no Inverno e sufocantes no Verão.» Uma última nota para a página 61 quando Rita Ferro comenta a ascensão social dos antigos criados: «no tempo do Botas este tipo de ultrapassagem popular seria impensável».

(Editora: Dom Quixote, Capa: Maria Manuel Lacerda, Foto da autora: José Cardigos Bastos, Foto da capa: Matthew Henry, Edição: Cecília Andrade, Revisão: Clara Boléo) 

 [Livros e Autores 06]

 

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

«Minha ex-mulher a solidão» de Vergílio Alberto Vieira


Vergílio Alberto Vieira (n.1950) é um autor multifacetado com livros de Poesia, Ficção, Teatro, Tradução, Ensaio e Diários. Neste seu recente livro de 125 páginas, à maneira de Ruben A., Carlos de Oliveira, Camilo Castelo Branco, Miguel Torga e Irene Lisboa (por exemplo), assina um registo em forma de diário – no caso 2014-2018. Tanto pode ser Irene Lisboa («Como tanto tempo lhe sobrou para ganhar o amor e mais amor teve para dar que para receber, quis o destino que, a Irene Lisboa, tempo não faltasse para fazer do pão o entendimento oferenda ao mundo») como uma nota pessoal («De muitos sítios sou mas não sei onde moro, até alguém dizer por mim onde poderei morrer.»), outra sobre familiares desavindos («Uns passam os dias a erguer castelos em estranhos reinos, outros, a derrubá-los em reinos estranhos.») ou sobre as pandeiretas televisivas: «Praça da Alergia, Pareço Certo, As Seitas lá de Casa, venha o diabo e escolha»). A escrita nunca se fixa apenas no «eu»; abre as palavras para o «nós»: «Se as lágrimas, pensavam os antigos, são a chuva que molha a vida inteira, a que hoje desaba sobre a humanidade é sinal de morte: chuva ácida em tempo de «deuses sem altura» ( Saint-John Perse) O ensaísta Manuel Antunes  surge na página 104: «Pelo carácter, pelo escol de pensamento, elegância de estilo; pela elevação do espírito que, a seu tempo, lhe adveio daquela piedade natural da alma, que a medida do silêncio confere aos justos, há que reconhecer em que sentido a lição de Propertius nos legou a arte de, com um remo, tocar a água; com o outro, a margem do rio.» Sempre a reflexão sobre a arte de escrever: «Escrever é ler o mundo conquanto o que lê não saiba ler nem escrever.» Sem esquecer uma bela síntese: «a boa escrita mostra, não diz.» Sendo o autor mais reconhecido como poeta, lá está a página 29 para o lembrar: «CARLOS PAREDES Dedilha pétalas / de rosa / o frio sangue / chama»     

(Editora Crescente Branco, Capa: Museu de Atenas, Retrato do autor: Emerenciano, Prefácio: António Cabrita)

[Um livro por semana 698]

 

domingo, 15 de janeiro de 2023

«tal&qual – memórias de um jornalismo» de Gonçalo Pereira Rosa e José Paulo Fafe

 

Gonçalo Pereira Rosa (n.1975) e José Paulo Fafe (n.1961) são os autores deste livro de 171 páginas com 32 primeiras páginas a cores de um jornal que custava 5$00 em 1980 e nasceu para vingar um programa com o mesmo título que um presidente da RTP liquidou com a desculpa de uma entrevista imaginada com José Agostinho de Macedo ter «indisposto» a hierarquia da Igreja – o que foi negado por D. António Ribeiro, cardeal patriarca de Lisboa. Mais do que «memórias de um jornalismo» o que este livro propõe são visitas guiadas a um certo tempo português no qual não havia Internet nem telemóvel.

O texto de Gonçalo Pereira Rosa ocupa 38 páginas, intitula-se «A vitamina do regime» e analisa o contexto da história de um jornal ao longo de 27 com as suas regras de ouro: «As histórias que não saem noutro lado», «Não há vacas sagradas», «Cão de guarda da Democracia», «A voz dos que não têm voz», «A transgressão prova o crime» e «Sem foto, não há história». Os autores dos 22 depoimentos são os seguintes jornalistas: Cristina Arvelos, Victor Bandarra, Sónia Bento, Fernando Brandão, Manuel Catarino, Frederico Duarte Carvalho, Palmira Correia, Paulo Delgado, José Paulo Fafe, João Ferreira, José Ferreira Fernandes, Catarina Vaz Guerreiro, Luís Marques, Jorge Morais, António Nascimento, Isabel Nery, Alexandre Pais, Carla Pernes, Octávio Ribeiro, Tiago Salazar, Paula Silva e Augusto Freitas de Sousa.     

Apenas três notas: página 58 «O jornalista conta histórias, não é a história», página 104 «era uma semanário que causava engulhos à esquerda e à direita, dava voz a quem não tinha voz e era lido tanto pelo ministro como pela senhora que fazia a limpeza ao gabinete ministerial» e página 158 «Livre, irreverente, incómodo, o projecto vivia do que cada leitor pagava por cada exemplar. Sem a almofada da publicidade e dos fretes encapotados, com a queda dos hábitos de leitura em papel, as receitas deixaram de poder garantir o trabalho dos extraordinários repórteres que lhe davam alma.»

(Editora: Âncora, Prefácio: Joaquim Letria, Capa: Cláudia Fonseca)

[Um livro por semana 697]