domingo, 23 de dezembro de 2018

«Já perto dos anjos» de António Ferra



Depois dos poemas de «Dos livros levanta-se um pássaro» (2017), António Ferra (n.1947) publica a narrativa poética «Já próximo dos anjos» que tem como ponto de partida um interesse: «os habitantes daquele bairro num pequeno café / à noite / a beber cerveja logo a seguir ao jantar (…) Viam futebol num plasma enorme para o tamanho do café / parte dos olhos do magote projectados na pantalha / a outra parte dos olhos no Nada Absoluto.» O título do livro incorpora uma dupla inscrição: pode ser lido como uma estação do Metro de Lisboa (Anjos) ou um ser espiritual que se presume habitar no céu (anjos).
Na página 44 o autor apresenta-se: «(aqui há uns cem anos eu era capaz de escrever o mistério da lua em vez de o mistério da noite, já então expressão gasta. Mas desde que o satélite passou a ser um lugar comum, devassado, pálido e sem interesse, desromantizou-se o luar e os escritores tiveram de reinventar o céu.)» e conclui na página 34: «A minha literatura é amar a liberdade / rir-me das frases impotentes / é mijar quando me apetece sobre o poder intelectual do comércio.»
A organização do livro é explicada na página 12: «Os nomes das pessoas, as identidades, são fundamentais para se compreender o que se está a passar, como é o caso dos relatos ficcionais.» Um exemplo: na página 7 «Um utópico pediu-me que lhe pagasse um copo de branco» mas na página 13 já é «O gajo do copo com quem bebi vinho branco perto do Chile – Daniel Moreira Nunes – olhava de soslaio para Ermelinda Neves Afonso» e na página 15 surge de novo «aquele que bebeu um copo de branco comigo numa pastelaria perto do Chile» para mais tarde afirmar «As mãos são o grande enigma da Humanidade / são a parte visível da alma, a fonte máxima da criatividade.»
Tudo se resume afinal a um «diálogo surdo entre Eros e Tanatos» (o Amor e a Morte) como no poema da página 42, diálogo esse que «dura enquanto respiramos / perguntando sem dar por isso / porque se esconde Deus nos sacrários / onde se faz a cremação dos dias.» 

(Artes finais: Pedro Serpa, Capa, fotografia e ilustração: António Ferra, Foto: Anjo-manequim, Florença 2006)   
     
[Um livro por semana 604]

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

«Só o meu computador me compreende» de Fernando Venâncio


Fernando Venâncio (n.1944) regressa nestes «contos breves» ao seu livro anterior «Beijo técnico» - páginas abertas ao absurdo da vida. Um exemplo na página 49 deste livro: Bons conselhos: «Ele dizia-me. Toma tudo à letra. Mas não tomes tudo a sério.» Outro exemplo mas este da vida enquanto realidade: O presidente dos EUA viu o seu partido perder a maioria do Senado mas chamou no Twitter «dia glorioso» ao seu dia de derrota. É possível que alguém acredite no absurdo e na mentira. Ora o absurdo está mais perto de nós do que parece. Veja-se o texto da página 81: «Tinha o romance e só faltava o título. O programa leu o romance em seis segundos, talvez menos, e cuspiu, hierarquizados, oito títulos que garantiam fortunas. Escolheu o quinto. Gostou dele. A última viúva de Josino Fontes. Catita ao máximo. Um alexandrino perfeito. Na história não compareciam nem Fontes nem um Josino, muito menos viúvas dele. Mas também a peça de Ionesco não tinha cantora careca nenhuma e foi o êxito que se sabe.» Uma história talvez passada no país que Stefan Zweig considerou «o país do futuro» está na página 80: «Seis meses depois do golpe de estado, o ditador mudou de ideias. Arranjou um jornal, uma rádio, uma televisão, um portal na Internet e lançou-se a pregar a justiça social. Foi eleito presidente por tão extrema percentagem que a ditadura voltou. Democraticamente. E foi democraticamente que de novo houve um ditador. Sempre haviam dito que aquele era um país inviável.»        
Num tempo dominado pelas redes sociais («Pai, o que são redes sociais? – São redes, filha, em que a gente cai. – Mas sociais porquê? – Porque caímos todos juntos ») há quem perante a exclusão não compreenda nem aceite: «Diz então o meu amigo que se espanta de quem não tem conta no Twitter ou no Instagram. – Exacto, Faz-me confusão. Dá-me pena.»  O esplendor do absurdo pode estar  na página 97: «Desmontaram a Ponte sobre o Tejo. A tal. Essa mesma. Parafuso a parafuso, porca a porca, anilha a anilha, tudo foi habilmente retirado, numerado, encaixotado, armazenado.» O humor anda paredes meias com o absurdo. Vejamos o texto da página 30: «Quando lhe perguntavam o que fazia, informava que era linguista. Pensavam imediatamente e às vezes diziam que certamente falava um ror de línguas. Respondia que sim mas que o verdadeiro linguista não precisava de conhecer mais do que uma.»
Na página 30 um conto sobre a morte: «Quando o vi já sentado no metro, dei-me conta de que reparara nele, moço novo, a entrar, naquela estação do hospital. No rosto trazia toda a tristeza do Mundo. Foi nos anos oitenta, quando a sida era a morte já rondando.» Na página 31 um conto sobre a vida: «Ele sorria. Voltava a olhar o telemóvel e sorria. Estava-se no metro, cheio, mas só eu o observava. Ele continuava a sorrir. Era quase ofensivo, aquele sorriso de descarada felicidade.» Fernando Venâncio cita o título de Camilo Castelo Branco (Onde está a felicidade?) porque toda a literatura é uma homenagem à literatura.  

 (Editora: On y va, Foto do autor: J. Rentes de Carvalho, Ilustração: Rita Albuquerque, Paginação: João Paulo Fidalgo)

[Um livro por semana 603]

domingo, 2 de dezembro de 2018

«Deus nos valha o bacalhau!» de Fernanda Frazão e Luís Filipe Coelho



Este livro de 22 páginas só é pequeno na aparência pois nele se recolhem 53 receitas de bacalhau divididas em duas secções: Petiscos e Entradas (6) e A substância (47). Tendo nascido no ano de 1951 em Santa Catarina (Caldas da Rainha) a minha infância foi «habitada» em casa de minha avó materna por muito bacalhau trazido pelo armazenista de Alcobaça senhor Sebastião dos Santos Vazão. Era o mesmo bacalhau islandês que ainda hoje (2018) compro na Manteigaria Silva, em Lisboa, entre o Rossio e a Praça da Figueira.
Para que conste ficam na ficha de leitura duas receitas. A primeira na página 3 é «Bacalhau à taverneiro»: «Coze-se o bacalhau. Aquece-se uma travessa e guarnece-se o fundo com bom azeite., misturado com salsa, chalotas, alho e cebolinho picados, temperando com pimenta e noz-moscada ralada, lasquece-se o bacalhau por cima, ainda quente e regue-se com limão ou agraço.»
A segunda é «Bacalhau à marinheira» na página 10: «Cozido o bacalhau, depõe-se numa travessa com a água da cozedura, na qual se dissolve uma gema de ovo cozida, um alho esmagado e pimenta, juntando-se-lhe além disso azeite cru, vinagre e cebolinhas cozidas com o bacalhau.»
Fiquemos por aqui não sem antes lembrar uma conversa com José Quitério que explicava a paixão portuguesa pelo bacalhau com esta ideia: «O bacalhau só sabe bem com bom azeite e onde há bom azeite é em Portugal…»

(Editora: Apenas Livros, Colecção: Papoulas Gustativas)

[Um livro por semana 602]