quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Alexandre O´Neill - «Há uns que ultrapassam o efémero da crónica»


Quase a chegar ao número cem das crónicas no «Correio do Ribatejo», já era tempo de uma destas crónicas se referir a Alexandre ´O Neill, (1924-1986), poeta maior e mestre da crónica. Descobri há dias o livro «Passo tudo pela refinadora» de Laurinda Bom (Editorial Notícias) na Livraria Sá da Costa e dei logo com uma aproximação do grande mestre às crónicas e ao seu mundo. Vejamos o que delas diz o Poeta Alexandre O’ Neill: «A crónica é, efectivamente, uma coisa efémera. Vai pedir alguma coisa de empréstimo à poesia e alguma coisa ao conto e não tem completa eficácia. Nem a construção de uma nem de outro. Sobre o que escrevo, creio que há algumas que podem perdurar algum tempo na memória das pessoas, mas lembro que hoje se lêem grandes cronistas brasileiros de outros tempos e se vê que perderam a força. O que acontece é que eu não sou, a bem dizer, um cronista. Escrevo (ou escrevia, melhor) textos para jornais que, depois reconheço, muito naturalmente, como textos poéticos. Então incluo-os nos livros. Nem todos, claro. Há uns que ultrapassam o efémero da crónica. Outros, que podem parecer prosaicos, são (ou melhor, serão) poemas em prosa, digamos, o que é muito diferente da prosa-prosa. E também me posso enganar e apressar, e tomar por poema o que não é…» Nota final – Alexandre O’ Neill foi grande amigo de Jacinto Baptista e muitas vezes conversei com o Poeta na Rua da Rosa onde existiu o Jornal «O Ponto» de boa memória. De boa memória também é o conselho do Poeta para que eu estivesse sempre rodeado de bons dicionários. Tenho feito os possíveis e os impossíveis por não esquecer essa recomendação…      

(Crónicas do Tejo 95)

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Luís Alberto Ferreira – do azul de Luanda ao azul de Belém


Luís Alberto Ferreira (n.1933) é um magnífico jornalista luandense que desde cedo se tornou adepto do Clube Atlético de Luanda, agremiação especial de onde partiu gente para o MPLA – Américo Boavida e Diógenes Boavida foram seus jogadores. As calúnias contra este Clube («clube dos cozinheiros», «clube dos mulatos», «ninho de conspiradores») ainda deram mais força a uma entidade que nasceu, cresceu e sobreviveu «como um corcel de persistência e de estoicismo» tornando-se uma Escola de «amizades, de interacções e de solidariedades». Daí o nome de «Escola» que todos lhe davam, englobando neste «todos» a diversidade dos negros mestiços e brancos que estavam na Direcção (Aníbal Melo, Couto Cabral, Faliero Cunha, Alberto Luís Ferreira) e a massa adepta que ia dos musseques às Ingombotas e aos Coqueiros. Leitor atento da Revista Stadium, o jovem Luís Alberto reparava sempre num jogador dos azuis de Belém (José Simões) que usava um lenço dobrado sobre os calções negros. A camisola era azul como a do Atlético de Luanda. Anos depois, já estudante em Lisboa, o jovem luandense ia ver os jogos de Os Belenenses de eléctrico ao lado de Artur Quaresma e de Mariano Amaro. José Simões foi vitimado por uma pneumonia não sem antes ter visto a sua recusa em fazer a saudação nazi mascarada na capa de uma Revista onde alguém lhe desenhou os dedos. Pode ter sido essa «Escola» que ensinou Luís Alberto Ferreira a respeitar os outros que são adversários mas não inimigos. Por isso no funeral do extremo-esquerdo portista Nóbrega estavam poucos adeptos e nenhum dos «adesivos» que só aparecem nas vitórias. O pai de Rui e de Avelino Mingas também lá jogou e por isso há uma lógica quando Rui Mingas canta: «Fuba podre / peixe podre / pano ruim /cinquenta angolares / porrada se refilares».

(Crónicas do Tejo 109 – fotografia de autor desconhecido)

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

«A pureza perdida do Desporto – futebol no Estado Novo» de Rahul Kumar


Rahul Kumar (n.1980) organiza o seu trabalho de investigação sobre o Desporto em Portugal de 1920 a 1960 em três capítulos: - Sociogénese do campo desportivo português – O Estado Novo e o desporto: ideologia e instituições – A pureza perdida do desporto: a profissionalização do jogador de futebol. Ao escolher o terceiro capítulo para título do livro, o autor segue o modelo dos contistas que designam um dos contos como título das suas colectâneas. É um risco assumido pois o conjunto de 288 páginas engloba várias vertentes e o Desporto em Portugal não tem nenhuma pureza perdida pois ela nunca existiu. Basta pensar que o maior feito do futebol português em 1928 (Jogos Olímpicos de Amsterdão) foi realizado ainda na base do «amadorismo» mas já se discutia na FIFA a questão o «manque à gagner» ou seja, neste caso, os salários perdidos pelos jogadores convocados para a selecção nacional durante a campanha olímpica de 1928.
Embora Rahul Kumar seja doutorado em Sociologia, este livro não deixa de ser, ao mesmo tempo, um ensaio e um conjunto de histórias: «A história aqui narrada procura compreender o significado cultural e social do desenvolvimento do jogo e a sua gradual diferenciação face a um outro conjunto de práticas recreativas e culturais. A transformação de uma actividade distintiva associada às classes dominantes, como era o futebol no final do século XIX, num espectáculo de massas não foi um processo pacífico. Com a afirmação plena da desportivização e da espactadorização do futebol – enquanto prática competitiva orientada para o público mais do que para o lazer dos praticantes – a questão à volta da qual se organizam as clivagens mais marcantes no campo concerne ao estatuto dos atletas desportivos e à sua profissionalização.»
Curioso é neste livro uma série de casos e de narrativas como por exemplo a irradiação do presidente da Direcção do Sporting Clube de Portugal em 1943 (Amado de Aguillar) por se ter dirigido ao todo poderoso Director-Geral dos Desportos em tom que o mesmo considerou «grave acto de indisciplina». Outro caso envolve o Sport Lisboa e Benfica em 1944 quando o seu secretário-geral (Júlio Ribeiro) foi suspenso por 30 dias e o Clube multado em 3.000 escudos.
O mundo do futebol em Portugal tem tido destas coisas insólitas: ainda há pouco tempo (1966) os jornalistas desportivos eram obrigados a serem sócios do Sindicato dos Tipógrafos e Ofícios Correlativos.

(Um livro por semana 577 - Edições Paquiderme, Revisão: Raul Henriques, Grafismo: Carlos Bártolo)


quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Do comboio de Falconwood ao comboio de Rio Maior


O meu neto Thomas está um homenzinho. Entrou para uma «Grammar School» em Londres e lá vai todos os dias com gravata e blazer no comboio que em sete minutos o leva para a Escola. Os sete minutos são os mesmos que me levam todos os dias ao Rossio. Gosto muito de todos os meus netos (são quatro) mas o mais velho é especial por ter sido o primeiro a nascer (2006) e por ser protagonista de um dos mas veementes poemas que escrevi - «Domingo à tarde em Falconwood». Pois a memória magoada desse domingo à tarde no jardim junto aos comboios de Falconwood com o seu arraial de exclusão, de maldade e de estupidez («sumos de pacote e bolos de fábrica») levou-me a recordar a Feira de Rio Maior. Além dos cabos de cebolas de Alvorninha, havia uma corrida de bicicletas com os homens da Volta a Portugal. Na curva da estrada colocavam fardos de palha. Ainda me lembro dos agentes da P.V.T. e das suas ruidosas máquinas. Outra máquina era o comboio que me lembro de ter visto em Rio Maior. Era uma locomotiva adaptada à via reduzida. Eu sentia-me excluído da Feira de Rio Maior porque quando queria alguma coisa a resposta era sempre a mesma: «Tu não tens querer!» Muitos anos depois em Falconwwod o meu neto Thomas foi excluído não de uma festa de aniversário (estavam no seu direito) mas do convívio com os seus amigos de rua e de escola que estavam a poucos centímetros do nosso banco de jardim. Há uma música triste comum às duas exclusões como se o comboio trouxesse na sua via reduzida a redução da vida ao rancor, à maldade e à estupidez. Ou seja à exclusão. Os meus avós podem ter a desculpa do tempo cinzento («Está tudo bem assim e não podia ser de outra forma») mas as mães de Falconwood não podem ter perdão. O meu neto Thomas vai estudar numa escola onde os filhos delas nunca vão entrar.     

(Crónicas do Tejo 94 – fotografia de autor desconhecido)


domingo, 10 de dezembro de 2017

Pedrógão Grande, Tancos e José Gomes Ferreira - o Senhor da Serra é longe de Sintra


Algumas patacoadas escritas sobre os mortos de Pedrógão Grande e o assalto a Tancos levaram-me a lembrar os 25 mortos do Regimento da Artilharia Ligeira de Queluz na Serra de Sintra no dia 8-9-1966. Folheando o Diário de José Gomes Ferreira (1900-1985) leio esta entrada relativa a esse dia: «Esta madrugada ouvi, pela primeira vez nos longos anos da minha existência, os regougos de uma raposa perto de casa. Descoberta de um mundo misterioso que aproveita o ante-nascimento do Sol para a liberdade sem homens.» em 1966 havia a Censura e o Senhor da Serra era longe de Sintra. Só em 17 de Setembro de 1966 o «poeta militante» escreve «De novo em Albarraque». O Senhor da Serra é perto de Coimbra e Sintra é perto de Lisboa. Num país pequeno como Portugal essas ciosas contam. Na Rua do Ouro os cafés estavam cheios de gente ansiosa por notícias não «visadas pela Censura». A verdade é que 51 anos passaram num instante e todas as mortes nos dizem respeito. Mesmo quando não parece. No dia 12 de Janeiro de 1966 José Gomes Ferreira (1900-1985) escreveu no seu Diário: «Em Janeiro de 1966 existem em Portugal 13 escritores cujos nomes não podem sair nos jornais. A saber: quatro componentes do júri que deu o prémio ao Luandino Vieira: Augusto Abelaira, Alexandre Pinheiro Torres, Fernanda Botelho e Manuel da Fonseca. E os nove assistentes que em Roma, na reunião da Comunidade Europeia de Escritores, votaram a expulsão do Paço de Arcos: Sophia de Mello Breyner, Mário Sacramento, Natália Correia, Francisco Rebelo, Jorge Reis, Fausto Lopo de Carvalho, o Tareco, o José Augusto França e o Urbano Tavares Rodrigues. E neste país de abaixo-assinados ainda não apareceu nenhum protesto de escritores contra este facto inaudito que nos marca a todos a ferro em brasa.»
   
(Crónicas do Tejo 93)

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

«A última viúva de África» de Carlos Vale Ferraz


Carlos Vale Ferraz (n.1946) é, desde «Nó cego» (1983), o autor de vários livros que são referência obrigatória na ficção portuguesa sobre a Guerra Colonial de 1961 a 1974. O seu mais recente título parte de uma notícia de jornal - «Emigrante milionário quer comprar igreja na sua terra e transformá-la num panteão para a mãe». Para Shakespeare «a memória é a guardiã da mente» e, mesmo por isso, a narrativa envolve também a Maria da Fonte: «O povo revoltou-se porque exigiu enterrar uma velha na igreja e as autoridades queriam os mortos do regime liberal em seu eterno repouso nos novos cemitérios com atestado da Junta de Saúde.» A protagonista (Alice Oliveira) nasceu no Minho e, depois de ter passado por Leopoldville, por Luanda e por Pretória viria a morrer na Nova Zelândia, do outro lado do Mundo: «Partira para o Congo com um homem muito mais velho e depois regressara para entregar o filho…»
Há neste livro uma dupla inscrição. De um lado a narrativa em caracteres «Times»: «A guerra do Congo reunia todos os venenos. Os de pior fama naquele caldeirão de interesses pareciam ser os mercenários brancos . A figura de Jean Scrame incendiou paixões desde 1960, após ter surgido nos jornais como comandante de um grupo de guerreiros negros e brancos, Les Affreux, os Terríveis, envolvidos nos negócios da secessão do Catanga, um dos territórios mais ricos do planeta em minérios raros e de alto valor.» Do outro lado a reflexão em «itálico»: «As independências africanas sofreram a contradição da espingarda Kalashnikov, os independentistas negros utilizaram-na para se libertarem dos brancos, mas não a fabricavam e tiveram de a comprar aos brancos!» O conflito do Catanga e do Congo Belga passa em «Times» para o outro lado da fronteira: «Alice Oliveira sabia de fonte certa o que iria acontecer no Norte de Angola e quando. A data do levantamento em armas contra os colonos portugueses fora definitivamente marcada pelos dirigentes do Congo e pelos bacongos angolanos, seus aliados e familiares do outro lado do rio.» Em itálico ficam as perguntas e as respostas: «Porque não tomaram as autoridades portuguesas medidas para evitar o que sabem que irá acontecer?» «Porque a guerra interessa ao Salazar!».
Não se limitando à biografia de Alice Oliveira, este livro avança para uma figura mítica que também esteve em África como Che Guevara: «instalara um foco de guerrilha nas montanhas de Baraka, com alguns revolucionários cubanos, seus camaradas, grupos sobreviventes das forças dos Simbas derrotados e mais alguns membros da tribo do chefe Kabila.» Mas reflecte, mais à frente, sobre «os guerreiros coloniais reunidos à volta da Torre de Belém» que projectam memórias «dos legionários romanos que há dois mil anos, no Campo da Morte, lamentaram a independência da Hispânia, da Lusitânia, da Judeia e da Britânia».

(Edição: Porto Editora, Capa: Manuel Pessoa - Um livro por semana 574)