terça-feira, 11 de maio de 2021

«Um piano ao fim da tarde» de Soledade Martinho Costa


Soledade Martinho Costa estreou-se na Poesia em 1973 («Reduto») e organiza as 185 páginas deste livro em nove sequências: De mim, Do amor, Da infância, Da poesia, dos poetas, Do Natal, Do país, De Lisboa, Dos outros e Quatro retratos – Ribatejo, Vila Franca de Xira, Nazaré e Sintra. O volume abre com uma citação de Federico García Lorca: «Todas as coisas têm o seu mistério e a poesia é o mistério de todas as coisas.» O poema da página 14 dá título ao livro: «O sopro da distância / Traz-me o som sem palavras /De um piano. / Fecho os olhos e tenho a certeza /De que alguém, ao longe /Toca para mim.» Entre o precário da Vida e o inevitável da Morte, só o Amor responde: «Olhar-te devagar /Reter as tuas mãos /Dizer teu nome / Beber das palavras /Com que fazes /Mudar em madrugadas /O sol-posto /Toda a distância /Incenso, timbre, gosto.»

Como Camilo Castelo Branco afirmou «A Poesia não tem presente; ou é sonho ou saudade» e aqui o passado tem vários registos. Por exemplo pessoais («Ajuda-me a aceitar o que não quero / A ter por companhia quem não conheço») ou «Não sei se eram os corpos das mulheres /Engolidos pelas grades dos portões /Se das fábricas a estridência dos apitos /Ou as sirenes dos barcos junto ao cais». Ou então dois colectivos. O da página 57 «É preciso ter sofrido /Ter sentido na alma /A mágoa /A impotência/ Para poder dizer /Que a vida nos engana /Que não é /Aquela rosa sem espinhos /Que a nossa primavera imaginou.» Ainda o da página 122, a memória dos homens que se ausentavam do Alentejo para pedir esmola: «Lembro-me /De os ver passar na minha rua /Em grupo/Grupo pequeno/ Três a quatro homens /A capa alentejana pelos ombros.» Perante os sentimentos contraditórios, amor e repulsa perante a Vida, o poema assinala na página 114: «A vida que me arrasta e me fascina /Embora disso me acuse e me arrependa.»

O futuro é uma advertência: «Se a vida não me deu /O que era justo/ Deixai-me dormir assim/ Sozinha e fria. /Agora /Não preciso mais /De companhia.» Entre o passado e o futuro, surgem as palavras e o seu projecto: «Fazer com elas uma arma / Ou uma pomba /Um lamento como um eco num poço/ A tranquilidade de um aceno/ Uma lágrima que se retrai/ Um sorriso que se esconde.» Sendo autora para a infância e juventude, não surpreende que Soledde Martinho Costa assinale os massacres de Alepo («De todas as palavras que o coração conhece /Nenhuma poderá expressar com sílabas exactas/ A visão da morte de um anjo à flor do mar») ou Shatila e Sabra: «As crianças condenadas que contestam /braços pendentes e lágrimas no rosto/ que se fale de paz e que no mundo/ sob o peso deposto nos seus ombros/ o homem se recuse a ser poeta/quando todas as crianças são poemas.»

(Editora Sarrabal, Capa: Pierre-Auguste Renoir, Revisão tipográfica: L. Baptista Coelho)  

[Um livro por semana 667]

 

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