O
livro abre com uma frase de Celeste Pedro («cada um de nós pode fazer tão pouco
ao menos que esse pouco seja feito») e outra da «Odisseia» de Homero traduzida
por Frederico Lourenço: «Desatrela os cavalos dos estrangeiros e trá-los para
que comam.» Julieta Monginho (n.1958) estreou-se em 1996 com «Juízo Perfeito», venceu o Grande Prémio de Romance e Novela
A.P.E./D.G.L.B. 2008 com «A terceira mãe» e neste livro de 243 páginas junta 10
histórias afluentes, trabalhadas em ficção a partir do voluntariado na ilha
grega de Chios no Verão de 2016.
O
ponto de partida é: «conhecer essas vidas em fuga, ajudá-las a seguir o caminho
aberto por direito, pois se não acreditasse no poder do direito como reduto do
pensamento humanista moldado por centenas de anos vividos e sofridos, me
perderia definitivamente no espectáculo do mundo.» As voluntárias sabem que
três palavras as acompanham («vontade, sorriso, impotência») além das palavras
de Eleni: «Aquela gente não pode ficar à mercê do frio e das autoridades de
Vial. Já estão a instalar gente à beira-mar, em Souda, junto à muralha. Não há
quem lhes dê de comer. Nós vamos dar-lhes de comer.» É neste vasto anfiteatro
que surge o trabalho do escritor, o historiador do quotidiano: «Observar o que
é vivido com um microscópio numa mão, um telescópio na outra. Estar dentro e
fora. Escavar, escavar, escavar, como se a pele fosse a alma e às vezes é.» O
primeiro olhar é para as mulheres: «A sua imensa tarefa – a de chorar? Quantas
vezes por mil se multiplica o seu desgosto? É no corpo delas que começa a dor.
São elas a parir e a ver partir os seus meninos – os soldados, os mortos. São
elas que escondem a vergonha, limpam e ordenam, calam e renunciam.» Num certo
sentido pode dizer-se que as mulheres estão mais visíveis entre o muro e o
mundo. O muro tem um destino («É o destino de todos os muros: serem derrubados,
depois de fazerem muitas vítimas.») e o mundo tem muitas perguntas: «O que
seria do mundo sem as armas? O que seria a raiva, sem a possibilidade de
eliminar o semelhante? Se o dinheiro desaparecesse por magia , o que fariam os
homens à cobiça? Se as terras se unissem num único lugar, o que fariam os
homens às disputas? Se os espelhos desaparecessem, o que fariam os homens à
vaidade?» Um aspecto curioso tem a ver com a fixação na Alemanha como destino:
Uma advogada uruguaia sublinhou que toda a gente quer ir para a Alemanha, a
autora refere «Alemanha, a terra prometida. Exibida no mundo inteiro como a
capital da Europa», um refugiado desabafa: «ficamos aqui só uns dias, depois
continuamos até à Alemanha.» Uma nota final para a história de Asmahn e a
escolha do nome de um bebé: «Vai chamar-se Nymir, como o avô, o pai do Ahmad. O
nome do meu pai fica para o segundo.». A mesma Asmahn que chora ao dizer: «O
Ahmad proibiu-me as fotografias. Tem de as apagar do telemóvel, suplico-lhe.»
As fotografias não passaram de um pretexto. A escolha do nome do bebé não
permite dúvidas.
(Editora: Porto Editora, Capa: Joana
Tordo, Foto: Filipe Monginho)
[Um livro por semana 631]
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