sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A luz e a sombra no olhar de Rui Jordão


Escrevo para juntar de novo o que a morte separou. De Rui Jordão tenho três histórias; duas que ouvi contar e outra que vivi. O jogador natural de Benguela aproveitou uma ida a Espanha para receber algum do dinheiro que lhe ficaram a dever no Saragoça mas as notas tiveram de ser distribuídas por todos os jogadores do Sporting Clube de Portugal na camioneta. Logo em Elvas começou o meticuloso trabalho de recolher o dinheiro entregue a cada um para poder passar na fronteira. Dizem que quando um amigo esteve em Cabo Verde, Rui Jordão foi visitá-lo: meteu-se num avião e viajou quem sabe a lembrar os quintalões de Benguela onde se podia jogar sem relógios em muda aos seis acaba aos doze. Há uma dupla inscrição. O inventário ao lado do esplendor da amizade. O grupo de amigos do futebol integrava Mário Jorge e Manuel Fernandes. Um dia no Estoril estava com Mário Jorge na esplanada quando Jordão passou por nós em corrida matinal. Nem mesmo o ter sido chamado pelo nome o demoveu. Olhou para mim e terá tido a intuição de que eu sou jornalista; seguiu em frente e nunca mais consegui palavras suas para um livro. Ainda bem que no tempo de Fernando Assis Pacheco havia disposição para entrevistas: o livro é «Retratos falados» da Editora ASA. Os homens querem os seus momentos de luz e os seus momentos de sombra. A mim calhou-me a sombra nessa manhã de esplanada no Estoril. Talvez não tenha sido o Jordão, ele-mesmo. Pode ter sido o seripipi de Benguela, ave de vasta paleta de cores: plumagem de canela, face negra, peito e garganta cinzentos, ventre dourado e rabadilha vermelha. Sendo natural de Benguela «leva no bico uma esperança» como dizem os versos de Ernesto Lara Filho e a música de Carlos Mendes.  Há no olhar de Rui Jordão o peso da sombra e a força da luz. Como num quadro, a vida insinua esta verdade: é a sombra que dá relevo à luz. É a morte que cria dimensões na vida. Há no olhar de Rui Jordão a fusão de três mundos: animal, vegetal e mineral. O mesmo é dizer: seripipi de Benguela, infinitos quintais das casas e pedras junto ao mar. O mar onde Rui Jordão corria todas as manhãs à procura das ondas onda cabe a beleza de todas as sereias e a massa sonora de todas as orquestras.      

(Fotografia de autor desconhecido)       

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