Escrevo
para juntar de novo o que a morte separou. De Rui Jordão tenho três histórias;
duas que ouvi contar e outra que vivi. O jogador natural de Benguela aproveitou
uma ida a Espanha para receber algum do dinheiro que lhe ficaram a dever no
Saragoça mas as notas tiveram de ser distribuídas por todos os jogadores do
Sporting Clube de Portugal na camioneta. Logo em Elvas começou o meticuloso
trabalho de recolher o dinheiro entregue a cada um para poder passar na
fronteira. Dizem que quando um amigo esteve em Cabo Verde, Rui Jordão foi
visitá-lo: meteu-se num avião e viajou quem sabe a lembrar os quintalões de
Benguela onde se podia jogar sem relógios em muda aos seis acaba aos doze. Há
uma dupla inscrição. O inventário ao lado do esplendor da amizade. O grupo de
amigos do futebol integrava Mário Jorge e Manuel Fernandes. Um dia no Estoril
estava com Mário Jorge na esplanada quando Jordão passou por nós em corrida
matinal. Nem mesmo o ter sido chamado pelo nome o demoveu. Olhou para mim e terá
tido a intuição de que eu sou jornalista; seguiu em frente e nunca mais
consegui palavras suas para um livro. Ainda bem que no tempo de Fernando Assis
Pacheco havia disposição para entrevistas: o livro é «Retratos falados» da
Editora ASA. Os homens querem os seus momentos de luz e os seus momentos de
sombra. A mim calhou-me a sombra nessa manhã de esplanada no Estoril. Talvez
não tenha sido o Jordão, ele-mesmo. Pode ter sido o seripipi de Benguela, ave
de vasta paleta de cores: plumagem de canela, face negra, peito e garganta cinzentos,
ventre dourado e rabadilha vermelha. Sendo natural de Benguela «leva no bico
uma esperança» como dizem os versos de Ernesto Lara Filho e a música de Carlos
Mendes. Há no olhar de Rui Jordão o peso
da sombra e a força da luz. Como num quadro, a vida insinua esta verdade: é a
sombra que dá relevo à luz. É a morte que cria dimensões na vida. Há no olhar
de Rui Jordão a fusão de três mundos: animal, vegetal e mineral. O mesmo é
dizer: seripipi de Benguela, infinitos quintais das casas e pedras junto ao
mar. O mar onde Rui Jordão corria todas as manhãs à procura das ondas onda cabe
a beleza de todas as sereias e a massa sonora de todas as orquestras.
(Fotografia de autor desconhecido)
Bom dia. Foi um enorme jogador. Paz à sua alma
ResponderEliminarFeliz fim de semana