quinta-feira, 11 de julho de 2019

«Veneza pode esperar» de Rita Ferro



Depois de se estrear em 1990 com «O nó na garganta» e de ter publicado romances, crónicas, fotobiografias e literatura infantil, Rita Ferro (n.1955) estreia-se no registo diarístico com este «Veneza pode esperar». O ponto de partida está na página 168: «O meu avô António nasceu há 117 anos – como pode um homem tão moderno ter nascido no século XIX? O João Amaral, da LeYa, desafiou-me a escrever um romance biográfico sobre ele, mas ao fim de meses de tentativas falhadas substituí-o por este diário.» O diário cobre o tempo passado entre Maio e Novembro de 2013 e o título do volume está na página 217. Rita Ferro define-se como uma «sem-terra» da Política: «A esquerda enerva-me por se arrogar de superioridade moral, a direita, por se acreditar socialmente superior, os monárquicos, por acharem que validam os seus pergaminhos prescritos com este pacote suspeito: o fado e as corridas como defesas prioritárias, a religião defendida como uma tribo, o ceptro sem mão que o sustente.» Ao contrário do que escreve na página 201 a autora não «fala sozinha». Este livro de 236 páginas pode ser lido como um coro grego onde cabemos todos e ninguém fica de fora. O ponto de partida para o «coro grego» pode ser uma frase de Woody Allen em «As faces de Harry:« A frase mais bela do mundo não é «amo-te» mas «é benigno». A propósito da Vida e daquilo que viemos aqui fazer: «Uns querem ser felizes, outros aprender. Os primeiros raramente conseguem, desesperam. Os segundos não se ralam com a infelicidade, desde que instrua. O problema é quando a infelicidade nada traz.» Veja-se esta reflexão sobre uma casa que demorou onze anos a construir e que hoje (2013) é só recordação: «Já não tenho a casa nem economias para a reforma, apenas grandes recordações.» Ou esta outra sobre gatos: «Hitler não gostava de gatos, Churchill adorava-os e eu fui educada a detestá-los. A minha mãe achava que ter gatos era um sintoma de solidão desesperada e sentia tanto medo deles como das donas.» Façamos um resumo: o livro lê o diferente, o presente e o futuro. O diferente é dado pela fala de uma mulher que vive em Harare: «Cada dia é uma dádiva e este apego que vocês têm às coisas na Europa, parece-nos absurdo.» O presente tem a ver com o autismo actual: «Chega um casal de espanhóis, cada um carregando o seu iPad. Preparo-me para dizer bom dia mas nenhum contacto é estabelecido. Conversam a um palmo de distância e olham noutra direcção. Nem a vibração do telemóvel os arranca a si mesmos. Quando falo e solto uma gargalhada não movem as cabeças.» O futuro é um dos netos: «Ontem, dando banho àqueles oito quilos de futuro, pensei que a vida tem sempre razão.»
Povoam este livro memórias de Agustina Bessa Luis, Manuel da Silva Ramos, Vergílio Ferreira, Natália Correia, Arur Portela Filho, Afonso Lopes Vieira, Gabriel García Márquez ou Sebastião da Gama – entre outros. Sobre o Prémio PEN Clube atribuído ao livro «A menina é filha de quem?» percebe-se a mágoa por indevidamente o prémio associar nas notícias o seu nome ao cargo político do avô e não ao facto de o mesmo avô ter trazido a Portugal em 1935 escritores como Henri Membré, François Mauriac e Jacques Maritain (entre outros) para ajudar a criar em Portugal um PEN Clube. 
         
(Editora: Dom Quixote, Revisão: Clara Boléo, Capa: Maria Manuel Lacerda, Edição: Cecília Andrade)

[Um livro por semana 623]

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