terça-feira, 23 de outubro de 2018

«Mil e outras noites – Uma antologia» de Eduardo Guerra Carneiro



Eduardo Guerra Carneiro (1942-2004) começou a publicar em 1961 («O perfil da estátua») mas é um livro de 1970 («Isto anda tudo ligado») que o torna conhecido, citado e referido. Jornalista sempre (República, O Século, Diário de Lisboa, Diário Popular, Tempo) a sua poesia é feita, segundo Vítor Silva Tavares em Agosto de 1978, de «memórias, sonhos, encontros, desencontros. As marcas incisivas do prazer – e do conhecimento da dor».
O jornal «Tempo» saía à quinta-feira, veja-se o poema da página 34: «Abandono agora estas palavras / e deixo que elas sirvam de pedal. / À quinta-feira tombam desarmadas. / Em desleixo as largo. Não são estas / já minhas as palavras. São papel.» Em Mafra o poeta teve como companheiros de Instrução José Cid, Nuno Guimarães e Adriano Correia de Oliveira. Lá, na Tapada, ensinavam a matar: «Em certos meses mafras se povoam / de soldados novos. São meses sol / de guerra que aqui dentro vai roendo / as mãos e lá fora vai matando / homens.»
A poesia de Eduardo Guerra Carneiro oscila (também mas não) só entre a paisagem e o povoamento, entre as corridas e os cafés. Vejamos no primeiro caso: «As motos roncam no circuito / de Vila Real e lá estou eu, pendurado no muro das traseiras, a espreitar a Norton  / que vem à cabeça, curvando, espectacular / na rampa de São Pedro.» No segundo caso temos «Nos cafés desenham os paisanos, vulgares / senhores de bagaço e genebra, raspando o mármore / entre as folhas do jornal. Morrem os cafés / com seu bilhar, bengaleiro e escarrador.» O poeta era vizinho de gatos e de Agostinho da Silva: «Resta-me ouvir os do vizinho, também sábio / e eu próprio ronronar / para o teu sorriso, de gato, no plátano».
Findo o livro de 202 páginas fica o desafio de sempre e para sempre: «É um desafio permanente esta aventura da escrita, corpo-a-corpo com o desejo de inventar a comunicação ou descrever o desejo. Desafio, pois, entre os muros da ignorância , os canais da imaginação, na paisagem real ou recriada.»

(Editora: Língua Morta, Selecção: Miguel Filipe Mochila, Prefácio/Posfácio: Vítor Silva Tavares, Colaboração: Sérgio Guerra Carneiro)

[Um livro por semana 596]

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