sábado, 16 de setembro de 2017

Dissertação para um quadro de Maria de Lourdes Mello e Castro


Num primeiro olhar vejo neste belíssimo quadro de 1957 o sorriso de Lena, a menina de 1976 quando subia ao monte de pedras do Jardim da Estrela para ver o Rio Tejo. Lena, ela-mesma, a Leninha, a mais nova num gruo de cinco irmãos (Kiki, Guida, Tó, Rui, Lena) a Lena que estava na Quinta do Conde num tempo de sonhos quando parecia a todos nós que o tempo não voava, como voa, afinal. Escreveu um dia Ruy Belo que «o medo da morte é a fonte da arte» e talvez seja essa a razão para o quadro de Maria de Lourdes Mello e Castro e para a minha obscura e discreta crónica. Hoje estamos em 2017, sessenta anos depois do quadro, falo com Lena uma vez por ano e sei que as suas filhas já estudam na Universidade. Eu próprio sou um portador de passe da terceira idade que me dá descontos porque pago hoje metade do que pagava em Fevereiro passado. A viagem da obra de arte é outra, não precisa de autocarros ou Metros nem de comboios para atravessar a paisagem e o povoamento da nossa vida cinzenta.
A obra de arte torna-se mais portátil, mais leve, mais particular. Graças à multiplicidade das cópias de um quadro de 1957 podemos hoje recordar num óleo com sessenta anos uma menina que nasceu em 1976 e nunca mais saiu da memória deste seu amigo nascido em 1951. Num quadro, tal como num poema, cada leitor apropria-se daquilo que julga poder guardar junto ao lado mais sentimental do corpo humano – o lado do coração. Num certo sentido não podia ser a Lena que em 1957 ainda não tinha nascido mas no quadro é de facto, na verdade, a Lena. Essa Lena de 1976. O esplendor do sorriso, a luz do olhar, a serena contemplação do Mundo. Ou dito de outra maneira e como queria André Breton: «É no amor humano que reside todo o poder de regeneração do Mundo».                         

(Crónicas do Tejo 77)

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