segunda-feira, 19 de junho de 2017

Revista Aldraba nº 21 Abril 2017 - Homenagem a Maria do Céu Ramos


O moínho da capa da Revista ALDRABA nº 21 está parado tal como parou no passado dia 18 de Abril o moínho do coração de Maria do Céu Ramos, vice-presidente da Direcção e associada nº 59 da ALDRABA. Entre o moínho que transforma grão em farinha e o que transforma dias em tempo de viver, as semelhanças são óbvias. Pelo menos para mim que fui convidado para apresentar o conteúdo destas 30 páginas. Num dos meus poemas associei o moínho ao navio: ambos precisam de velas e ambos viajam embora com destinos diferentes. O destino do moínho é o pão, o destino do navio é o porto mais próximo. Nada contra os motores actuais mas isso é outra conversa.  
O texto de José Nelson Cordeniz sobre as danças de Carnaval na Ilha Terceira surge com uma arte final algo descuidada. Além de um abuso dos advérbios de modo (essencialmente, especialmente, propriamente, actualmente, claramente) nota-se que o acordeão vem a página 21 como algo de positivo e na página 19 aparece a concertina como instrumento musical que tem prejudicado a música folclórica. Embora não seja este o local e o momento para tratar este assunto, a verdade é que para a maioria das pessoas acordeão e concertina andam a par. Outro pormenor de descuido está na referência à estrutura das danças: «Saudação, Assunto e Despedida» na página 20 mas «Introdução, Assunto e Despedida» na página 21 embora o texto anuncie que é tudo «igual». Pouco compreensível é na página 21 o texto que refere «um convívio após a Dança recheado de iguarias típicas» mas não é o convívio que é recheado; pode ser a mesa posta. De qualquer modo a mensagem de inventário e notícia chega ao leitor e é esse o objectivo do texto.
Nuno Nabais num artigo de opinião intitulado «Lisboa, a Cultura e Espinosa» refere entre outros pontos de muito interesse esta ideia: «hoje aquilo que interessa à Universidade não é a indústria cultural mas o comércio cultural». Nesse sentido, não é de estranhar que, mais à frente, surja outra ideia sobre a mudança de paradigma: «os suplementos literários foram substituídos por agendas culturais» ou dito de outra maneira «uma compilação avulsa de sugestões de entretenimento». Em termos sintéticos pode dizer-se que os jornais do meu tempo (1978) tinham secções de «Artes e Espectáculos» mas hoje é só espectáculo. Tudo isto pode ser dito de outra maneira: são quatro os conceitos e as palavras-chave para a actual circunstância – património, luxo, arte e turismo. Espinosa nasceu em Amsterdam. De família natural de Vidigueira que foi expulsa de Portugal e refugiou-se na Holanda. Escreve Nuno Nabais: «Sonhava em português, fazia exegese em hebraico, escrevia tratados de ética e filosofia política em latim e dirigia a oficina de lentes em holandês». Nestas palavras está um resumo do escritor que pode vir um dia para o Panteão Nacional ou ter até o seu nome num Prémio Literário.
Fernando Fitas assina um texto sobre os Museus no qual afirma que «o Museu tem de ser um espaço vivo para ser vivido», permitindo aos visitantes manusear as peças das prateleiras. Luís Filipe Maçarico refere dois livros de António Salvado e cita de um deles a frase de um autor francês para quem «o Museu é a Universidade Popular através dos objectos». Shawn Parkhurst da Universidade americana de Louiseville (Kentucky) ocupa a página 8 com um texto de amor ao Rio Douro: «O amor agarrou-me em 1992. Eu já não existo sem o Douro, mesmo estando longe dele». Outras águas são as de Sónia Tomé. Resumem a sua participação no Festival Literário Internacional de Querença em Agosto de 2016. Nesse encontro literário foi patente a flutuação entre dois tempos e dois mundos da água no Alto Barrocal Algarvio: ora escassa, ora excessiva. Muito curiosa é uma das quadras sobre uma realidade que já não volta: a má língua das mulheres quando lavavam a roupa numa pedra da ribeira: «Água nos dá alegria / Lava a alma e o coração / Água lava tudo quanto cria / Só a má língua é que não».
João Coelho recorda os tempos difíceis dos marçanos que com 13 ou 14 anos chegavam da terra e começavam logo a carregar as compras das «senhoras» às costas em cabazes de vime. O pagamento era «cama, mesa e roupa lavada» mas a cama era má, a comida era´péssima e da roupa só era lavada uma muda por semana que o sabão sempre foi caro e a ganância sempre foi forte. Nuno Roque da Silveira conta a história de Joaquim Raposo Dias, um polidor de móveis na Calçada das Necessidades e a memória do seu avô Raposo que tinha um quiosque no cruzamento das ruas Marquês de Fronteira e Artilharia Um. Escreve a certo passo «Caíram-lhe em cima» mas o texto não explica quem caiu em cima do avô. Talvez mariolas como então se dizia e escrevia. Maria Adelaide Furtado lembra a gramática dos toques dos sinos que até há pouco tempo e ainda no século XX regulavam a vida de muitas comunidades. Nos Açores havia uma frase em muitas freguesias que toda a gente acatava: «Trindades batidas, meninas recolhidas» Tanto o sino como o chocalho nascem da arte do fogo. E tanto um como outro continuam a ter uma função comunicativa mas já não tão importante como por exemplo no século XIX em que «era o sino que punha em movimento todo o Universo». Os chocalhos empurravam os rebanhos mas hoje há cada vez menos pastores e menos rebanhos para guardar. José Rodrigues Simão assina um texto de memórias (55 anos depois no título) apesar de no texto se referir a 50 anos e não 55. Embora louve o esplendor da paisagem não existe nele um enquadramento geográfico que o permita localizar de imediato. O mesmo se passa com o texto de Mateus Dias Campeã sobre a memória de uma caçada e o uso do furão. Maria Eugénia Gomes assina as páginas sobre as viagens e os actos eleitorais da ALDRABA e é no seu texto que se percebe melhor o conteúdo da capa da Revista: «Os moinhos do Outeiro são únicos no Mundo em termos de funcionamento». O cartoon de Luís Afonso mantém o nível altíssimo de ironia que num jantar simpático em Serpa o levou a lamentar para mim a saída de Sousa Cintra do lugar de Presidente da Direcção do SCP: «Cada frase daquele homem era já meia anedota. Era só completar.» A Revista fecha com um poema, um belo poema de Izidro Alves que além de tudo o que quase exige o texto da página 8 («terra, poesia e emoção») tem muita oficina e é essa oficina que leva este poema a cumprir aquilo que me parece ser a razão de ser de toda a literatura: ligar de novo tudo o que a Morte separou.

Sem comentários:

Enviar um comentário