Meu pai não tinha sandálias de vento. No ano de 1956 meu pai tinha uma bicicleta cor de cinza e eu sempre soube distinguir, na pequena descida da Várzea do Lameirão, o som inconfundível da sua roda pedaleira em descanso. Para os outros era apenas mais uma bicicleta; para mim era a bicicleta. Não havia outra. Foi nessa bicicleta que ele fez viagens repetidas até Santarém para tirar a carta de condução. Eram noventa quilómetros por semana, por estradas péssimas, debaixo de chuva, levando batatas e azeite de casa para comprar todos os dias o peixe mais barato no mercado de Santarém. Pedalou sacrifícios, suores, poupanças, vento agreste e o mais que natural desejo de fugir ao seu destino traçado de cavador. Ou como dizia o senhor padre Castelão na missa de Domingo anunciando futuros casamentos, «profissão jornaleiro». Porque viviam, fingiam que viviam, da jorna paga aos Domingos de manhã no largo maior da terra depois da missa e antes da ida à taberna. Quando meu pai voltou orgulhoso da sua carta de ligeiros, pesados e serviço público, o patrão resolveu contratar um motorista nascido numa aldeia perto da Alcobaça. Vingou-se assim do seu analfabetismo total: como não conseguiu tirar a carta de condução, pagou uma fortuna a uns aldrabões que o receberam num café das Caldas da Rainha. Saíram pelas traseiras e deixaram-no só, sem dinheiro e sem carta de condução. Foi assim, na trilogia Deus/Pátria/Autoridade, em Santa Catarina, uma pequena aldeia da Estremadura, que aprendi o sentido exacto e total da palavra fascismo. Afinal uma palavra ainda desconhecida para mim nesse já distante ano de 1956. Bastaram dez palavras assim pronunciadas: «Tirou a carta mas vai puxar terra para os pés».
[Crónicas do Tejo 240]
(Fotografia da Colecção de JCF)
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