Estamos em Blackheath. Na Morden Road passamos à porta da
casa do compositor Charles Gounod que aqui viveu nos tempos da guerra entre a
França e a Prússia. Vinha à tarde no comboio de Charing Cross e alugava uma
carruagem à porta da estação dos comboios. Mais à frente, no planalto, ficamos
a saber que a actual A2, um dos itinerários principais de Inglaterra foi, em
tempos recuados, a estrada romana para Canterbury. Henrique VIII, entre pompa e
circunstância, aqui recebeu Ana de Cléves como futura esposa, no ano de 1540.
Por sua vez Wat Tyler juntou em 1381 uma assembleia de camponeses revoltados nesta
mesma estrada. Hoje o coração desta imensidão verde recebe mães com crianças,
passeadores de cães, papagaios de papel, carrinhos de choque e jogatanas
intermináveis de futebol –muda aos seis, acaba aos doze. Os circos, tal como as
caravanas de ciganos, já são mais raros. Foi neste relvado sem fim à vista que
nasceram alguns clubes de rugby e de futebol. Um deles, o Blackheath Football
Club, fez parte dos pioneiros que, em 1863, na Freemason´s Tavern, criaram as
leis do moderno futebol, tornando a sua prática independente do rugby. Cruzando
em diagonal o Greenwich Royal Park, cedo chegamos à zona do mercado a funcionar
em grande aos sábados e domingos. Muito perto das antigas cozinhas onde os
velhos marinheiros, sem família e sem dinheiro, vinham às sopas reais, surgem
as mais inesperadas lojas. De antiguidades, lhes chamamos em Portugal. São
coisas ditas efémeras: mapas, cartazes, postais ilustrados, livros antigos,
fotografias, discos LP e EP, pequenos móveis úteis às costureiras antigas, no
tempo das libras se dividirem em xelins e em dinheiros. Nessa rua descubro o
conceito activo e prático de fundo editorial: compram-se cinco livros por cinco
libras, cada livro mais barato do que uma viagem de autocarro. Vejamos um
conjunto: uma história breve do Jazz, um livro da Penguin sobre pássaros, uma
biografia de Frank Sinatra, a vida do guarda-redes mais lendário do vizinho
Charlton Athletic e um guia da Londres, bairro a bairro, de Barnet e Merton, de
Ealing a Lewisham. Mas apetece voltar
atrás como se o efémero se pudesse suspender e transformar em permanente,
algures numa estante. Não resisti e trouxe uma gravura mostrando Portugal como
um leão e Espanha como uma mulher. Gravura antiga, percebe-se pelas bandeiras.
Século XIX, sem dúvida. Há lojas de roupa em segunda mão, boa e barata,
devidamente limpa e reclassificada que as pessoas já se habituaram a procurar
uma vez por semana para ver as novidades. Os lucros dessas lojas revertem para
apoio da investigação e da luta contra o cancro. Os ingleses de aqui ao pé da
porta gostam de conservar os objectos do passado. Em Blackheath, Age Exchange é
o nome desta loja especial na qual se reproduz o ambiente de um estabelecimento
comercial dos anos 40, com balcão, balanças e moedas da época da II Guerra
Mundial. Já passei férias em Southwark, na City (Barbican) e em Blackheath;
faço sempre aproximações a Lisboa. A Southwark chamava Terreiro do Trigo, ao
Barbican chamava Gulbenkian e a Blackheath chamo Restelo. No primeiro caso o
rio ali mesmo à beira, no segundo os jardins e os prédios com o brutalismo dos
anos 60 e 70, no terceiro caso as grandes avenidas com casas bonitas e árvores
frondosas. Há uma comum curiosidade. Entre o Terreiro do Trigo e Santa Apolónia
havia em temos o Cais dos Soldados. Tal como em Greewich havia o cais de onde
partiam jovens marinheiros, soldados da Rainha, os mesmos que anos mais tarde,
sem família e sem dinheiro, terão a sua sopa diária nos edifícios da Escola
Naval. É dessa rua, do outro lado dessa rua de Greenwich que trago como memória
de uma memória, a gravura onde Portugal é um leão e a Espanha uma mulher.
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